BRASIL; Secularização do estado

De Dicionário de História Cultural de la Iglesía en América Latina
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O Brasil foi um Estado oficialmente católico até 7 de janeiro de 1890, quando o Decreto 119A da recém-proclamada república impôs uma mudança de forma. Apesar do modo abrupto com que a medida foi tomada, ela foi a resultante de um processo iniciado ainda na fase aguda da Questão Religiosa, ou seja, entre 1872 e 1875.

Durante a querela, uma parcela do clero de então, justamente para ser fiel a Roma, gradualmente passou a tolerar uma possibilidade que o próprio Syllabus condenara em 1864: a separação da engrenagem estatal como recurso extremo para assegurar aquelas liberades que o regalismo institucional não consentia. Sem propor a laicização, Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira (1844-1878), no decorrer do conflito com a monarquia, declarou:“Se essa migalha que recebemos deve ser o preço de nossa traição aos sagrados e inalienáveis direitos da Santa e Imaculada Esposa do Divino Cordeiro, no-la tirem, muito embora. […] Em uma palavra, renunciamos a todas as honras civis que nos dá o governo de Sua Majestade, contanto que nos restituam a liberdade de poder dirigir e governar a porção do rebanho de Nosso Senhor Jesus Cristo, que o Espírito Santo confiou aos nossos cuidados e solicitudes, segundo o ensino da Santa Madre Igreja e os ditames da nossa consciência”.[1]

Um episcopado alçando a voz causava desconforto nalguns segmentos políticos, também por uma outra razão: teoricamente, a excomunhão eclesiástica tinha efeitos civis no Brasil. Isso jamais tinha acontecido, e a alternativa, curiosamente, partiu do bispo de Belém do Pará, Dom Antônio de Macedo Costa. Mostrando já como os vínculos Igreja-Estado se debilitavam, ele apresentou a Dom Pedro II uma proposta impensável na época, principalmente tratando-se de um prelado diocesano: “Se o Governo não julga dever dar efeitos civis à excomunhão, recuse os efeitos civis”.[2]

A legislação não mudou, mas a psicologia católica em relação ao modelo existente sim. No meio do laicato esclarecido isso se manifestou em duas tendências: a primeira, encabeçada por Carlos de Laet (1847-1927) aspirava uma reforma do sistema, mantendo contudo as suas características essenciais. O projeto não aprovado do deputado Ignácio Antônio de Assis Martins (1839 – 1903), apresentado no parlamento, aos 20 de março de 1875, em defesa do casamento civil para quem não desejasse receber o sacramento católico, se enquadra nessa tentativa.[3]Outros militantes católicos leigos, no entanto, duvidavam dessa possibilidade e passaram a defender a ruptura pura e simples. Dentre eles, se encontravam intelectuais de peso, como José Soriano de Souza e Cândido Mendes de Almeida, que assim pensavam por não verem de que modo poderia a Igreja manter-se livre em um Estado que a limitava quase que ao escalão duma repartição do governo.

Ambos eram do parecer de que o Império brasileiro, no fundo, nunca tinha sido verdadeiramente cristão, e que toda insistência nesse sentido seria vã. Sobre isso, Cândido Mendes assumiu uma posição clara: “Hoje semelhante situação é insustentável, máxime nos países com forma de governo idêntica à nossa. O Estado, se não é ateu, tem-se tornado indiferente em matéria religiosa: portanto, não é mais competente para ser procurador oficioso e imposto à Igreja”.[4]

O grupo que desejava a separação atingiu o apogeu quando agregou em suas fileiras Leandro Bezerra Monteiro (1826 - 1911). Tratava-se de uma adesão retumbante: o neófito do separatismo não era um personagem qualquer, mas sim um dos mais convictos “ultramontanos” do parlamento brasileiro, que se notabilizara pela defesa apaixonada em favor dos bispos durante a Questão Religiosa. Ele havia enfrentado tantos debates com os anticlericais que até recebera a alcunha de “frei Leandro”, da parte de certos críticos e caricaturistas.[5]

E, foi este mesmo aguerrido polemista que, em defesa do seu credo, admitiu ser chegada a hora de levar a cabo a cisão: “Se querem que a religião Católica Apostólica Romana seja a do Estado para exercício de tão cruento despotismo, declaro solenemente que por mim renuncio ao privilégio, que fere a consciência dos fiéis, e prefiro a separação da Igreja do Estado. Em estado tão excepcional que nos achamos, seja-me permitido esta declaração. Lastimo que o extremo dos sofrimentos nos leve a esse ponto. O Brasil perde, mas o que quero é a liberdade da Igreja. Amo a minha sociedade pátria, porém, amo mais a minha religião, porque aquela só pode me oferecer as prosperidades desta vida, quando esta me promete as glórias da eternidade. Já ouvi um dos nossos estadistas dizer na outra casa do parlamento que agora mais do que nunca o Estado deverá estar ligado à Igreja, depois da definição do dogma da infalibilidade do Papa, porquanto, separados, a Igreja, em liberdade, havia de dominar. Assim, vê-se que há escola dos que sustentam a união não por amor da Igreja, mas por desejo de dominá-la. Favores e privilégios neste sentido, nós católicos devemos recusar”.[6]

Quanto aos regalistas, o pensamento deles também passou por longa evolução, antes que a maioria optasse pela laicização do Estado. No início, defenderam de forma veemente a submissão do Altar ao Trono, mas, ao constatarem que a reforma eclesial ultramontana era um fato consumado, mudaram de parecer. O ressentimento ante a trasnformação eclesial acontecida foi bem sintetizado na acusação de Ubaldino do Amaral Fontoura (1842-1920): “Constitui, portanto, a Igreja de Roma, em condições diametralmente opostas à Igreja do Estado, como a Constituição consentiu e autorizou. A atual Igreja Romana, essa de Pio IX, não é a do Estado”.[7]

Não o era de fato, e a situação se tornara complexa demais para ser resolvida com soluções simplistas, como aquela do Governo contentar ou não ao clero e vice-versa. O modelo de união Trono-Altar no Brasil era em si mesmo uma fórmula exaurida, e demonstravam-no a atitude assumida pelo episcopado. Teoricamente os bispos defendiam o Estado religioso, mas na prática, entre a oposição frontal que suas propostas enfrentavam e a ingerência regalista que prosseguia, eles acabavam ficando sem nenhuma alternativa concreta. De qualquer modo, com o tempo, certos “ultramontanos” e anticlericais, por razões próprias, fizeram causa comum.

Até mesmo o Grão-mestre maçom Joaquim Saldanha Marinho (1816-1895), mantendo a costumeira mordacidade, no dia 12 de fevereiro de 1879, admitiria: “Temos conhecido que os ultramontanos, ainda os mais arraigados, os que se dizem mais firmes nisso, que eles chamam a sua doutrina e a sua fé, e querem que seja a única possível, estão acordes na idéia da separação da Igreja do Estado. Todos eles concordam”.[8]

Controvérsias a parte, a separação entre a Igreja e o Império já estava lentamente se concretizando, sem que nenhuma das partes o lamentasse: na diocese de Mariana, no ano de 1882, Dom Antônio Maria Corrêa de Sá e Benevides (1836-1896), proibiu aos estudantes de prestarem exames perante as bancas examinadoras de Ouro Preto, afirmando que a casa formativa do clero diocesano não era um colégio sujeito ao ensino, exames e disciplina à mercê dos pais.[9]Mais importante ainda foi que aos bispos se deixou de exigir o juramento de fidelidade ao Imperador, devendo estes ater-se somente ao canônico; também virou costume não mais submeter a nomeação dos internúncios ao famigerado placet, ficando tudo restrito às formalidades de praxe comuns a qualquer embaixador; e além disso, a partir de 1º de janeiro de 1889, justamente o último ano de existência da Monarquia no Brasil, não se mandou mais ao Governo as relações do movimento religioso das paróquias. Os tempos estavam maduros para a completa separação.[10]

A mudança definitiva de rota aconteceu depois que os militares assumiram o poder por meio do golpe republicano de 15 de novembro de 1889. Eles logo trataram de secularizar o Estado, mas, num modo que evitasse conflitos desestabilizadores para o novo regime. A primeira proposta partiu de um positivista, o ministro da agricultura Demétrio Nunes Ribeiro (1853-1933), que apresentara dois projetos a respeito, ambos defendendo a adoção de sérias restrições à Igreja. Ditas propostas foram rejeitadas e os demais membros do ministério preferiram, por unanimidade, adotar um substitutivo do Ministro da Fazenda, Rui Barbosa de Oliveira (1849-1923).

O novo texto não foi fruto do improviso. Rui, a estas alturas já abandonara o radicalismo de outrora e por isso, contactou o bispo de Belém do Pará, Dom Antônio de Macedo Costa, que se encontrava no Rio de Janeiro para tratamento. O bispo mantinha com Rui, apesar de todas as suas diferenças, uma relação de respeito que vinha desde os tempos em que aquele fora seu aluno no Colégio Baiano, e isso permitiu que o diálogo transcorresse de forma realmente amigável. Dom Antônio era contrário à laicização do Estado, quando, porém, considerou que ela era inevitável, procurou uma saída honrosa.

Teve sucesso, pois Rui afirmou que o modelo a ser imitado no Brasil não era o da a França, mas sim o dos Estados Unidos. Também Quintino Bocaiúva (1836-1912), titular da pasta das Relações Exteriores do governo provisório da República, sustentaria que o novo regime haveria de dar à Igreja Católica a mesma liberdade que ela gozava no grande país do norte. Por fim, o próprio Presidente Deodoro se manifestou: “Sou católico, não assinarei uma Constituição que ofenda a liberdade da Igreja. Dos bens das ordens religiosas não permitirei que o governo tome nem uma pedra”.[11]

Assim, a redação chegou ao seu termo e o decreto foi sancionado no dia 7 de janeiro de 1890. O grande destaque foi seu artigo 4º, que declarava “abolido o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerrogativas”.[12]Pouco depois, outras medidas completaram a laicização. Foi o caso do Decreto 181, de 24 de janeiro de 1890, impondo o casamento civil, ao que juntaram o Decreto n. 789, estabelecendo a secularização dos cemitérios aos 27 de setembro seguinte, mais o Decreto de supressão da cadeira de direito eclesiástico dos cursos jurídicos de Recife e São Paulo, outorgado no dia 14 de novembro daquele mesmo ano.[13]

Curiosamente, tudo isso aconteceu gerando poucos protestos. Uma boa explicação para tanto foi dada por Dom José Pereira da Silva Barros (1835 – 1898), prelado de Olinda. Ele salientava que o Governo decaído programava introduzir as mesmas medidas secularizadoras propostas pelos republicanos, só que, em piores condições. Ou seja, o Império projetava estabelecer o casamento civil, a liberdade absoluta dos cultos, e a secularização dos cemitérios, mas, “não a abolição do padroado e dos seus consectários, de sorte que teríamos de sofrer em lugar de um mal, dois: a separação por um lado e a escravidão por outro”.[14]

Daí que, não obstante o caráter leigo do Governo Provisório e o vago ranço positivista da Constituição de 1891, a Igreja em nenhum momento fez uma oposição à República enquanto tal. Por outro lado, tampouco houve da parte dos republicanos tentativas sérias de se criar o estado indiferente em matéria religiosa idealizado pelos anticlericais. Deodoro e seus sucessores se afirmariam publicamente católicos, e isso, aliás, era tão natural que, aos 15 de novembro de 1890, na mensagem de abertura do Congresso Constituinte, ele fez um agradecimento à Providência, por lhe haver consentido de ser elevado à magistratura suprema da nação.[15]

Não faltaram desconfianças recíprocas no período sucessivo e tampouco deixaram de se verificar algumas iniciativas anticlericais, as quais, contudo, não se transformaram em fato. O tempo se encarregou de ajustar soluções até mesmo para questões espinhosas como o casamento civil, implantado pela República. A Igreja não desistiria de exigir o reconhecimento do matrimônio religioso, mas, confirmando a postura que adotara desde o início, procurava fazê-lo sem contrapor-se por princípio à instituição pública. Incidentes ocasionais aconteceram, mas, as boas relações nunca foram comprometidas. Contava então a liberdade conquistada, que permitia à instituição eclesiástica de reestruturar-se sem entraves, coisa que Francisco de Macedo Costa, irmão de Dom Antônio de Macedo Costa, falecido no dia 20 de março de 1891, manifestou em 1916 com visível satisfação: “Tínhamos doze bispos para as vinte duas vastíssimas províncias do Império. [...] Erigir um bispado! Aumentar o numero destes combatentes favoráveis às ambições da Cúria Romana! […] Agora não existem mais os bispos submissos nos seus palácios, recebendo ordens dos secretários do Estado. São bispos da Igreja de Jesus, sem algemas regalistas, solidários, fortes porque unidos de coração e alma à Sé de Pedro. […] Poucos dias atrás se presenciou na Bahia, com amoroso entusiasmo, o magnífico e mais animador dos espetáculos, vendo reunidos na nossa igreja primacial todos os prelados do norte. […] Nas regiões do sul reuniões iguais foram realizadas. […] Certamente o amoroso Padroado não poderia consentir a reunião de tais assembléias, atentatórias [come se dizia] à soberania da nação, por favorecer as ambições da Cúria Romana (os grifos são do autor). Graças a Deus! Isso passou”.[16]

Não era o único a pensar assim. Na década seguinte, analisando o que ocorrera, também Lacerda de Almeida diria: “Deixada livre, [...] a Igreja esquecida dos poderes públicos cresceu e prosperou, fez-se lembrada, apesar de ignorada”.[17]

NOTAS

  1. VITAL MARIA GONÇALVES DE OLIVEIRA, Resposta do Bispo de Olinda ao Aviso de 12 de junho de 1873, Tipografia Clássica de L. F. dos Santos, Recife 1873, pp. 36 - 37.
  2. ANTÔNIO DE MACEDO COSTA, Memória dirigida a Sua Majestade o Imperador, Tipografia da Boa Nova, Belém 1873, p. 27.
  3. Anais do Parlamento Brasileiro – Câmara dos deputados, sessão extraordinário de 1875, Tipografia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Cia, Rio de Janeiro 1875, p. 48.
  4. JÚLIO CÉSAR DE MORAIS CARNEIRO, O Catolicismo no Brasil, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro 1950, p. 218.
  5. EUGÊNIO VILHENA DE MORAIS, O Gabinete de Caxias e a anistia aos bispos na questão religiosa, F. Briguiet & Cia, Rio de Janeiro 1930, p. 82.
  6. Anais do Parlamento Brasileiro – Câmara dos Deputados, sessão de 1875, tomo 2, p. 229.
  7. UBALDINO DO AMARAL FONTOURA, Saldanha Marinho – esboço biográfico, Dias da Silva Júnior Tipógrafo Editor, Rio de Janeiro 1878, pp. 154 – 155.
  8. JOAQUIM SALDANHA MARINHO, Discursos proferidos e projetos apresentados na Câmara dos Senhores deputados na sessão de 1879, Tipografia Perseverança, Rio de Janeiro 1880, p. 56.
  9. MANOEL ISAÚ SOUZA PONCIANO SANTOS, Luz e sombras, nota 26, Salesianas, São Paulo 2000, p. 89.
  10. LUIGI LASAGNA, Epistolário, vol. II, Libreria Ateneo Salesiano, Roma 1995, p. 27.
  11. MANUEL BARBOSA, A Igreja no Brasil, Editora e Obras Gráficas A Noite, Rio de Janeiro 1949, pp. 287 – 290.
  12. Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, 1º fascículo, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro 1890, p. 10.
  13. MANUEL FERRAZ DE CAMPOS SALES ET ALII, Atos do Governo Provisório, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, pp. 19 – 36; Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, fascículo 9, imprensa nacional, Rio de Janeiro 1890, p. 2454; Idem, ibidem, fasc.1, pp. 1310 – 1311.
  14. ASV, Carta de Dom José Pereira da Silva Barros ao Internúncio”, em: Nunciatura Apostólica no Brasil, fasc. 330, caixa 68, doc. 15, fl. 34b.
  15. Documentos Parlamentares – Mensagens Presidenciais (1891 – 1910), Tipografia do Progresso, Rio de Janeiro 1912, p. 9.
  16. FRANCISCO DE MACEDO COSTA, Lutas e Vitórias, Estabelecimento dos Dois Mundos, Bahia 1916, pp. 82 – 83.
  17. FRANCISCO JOSÉ LACERDA DE ALMEIDA, A Igreja o Estado. Suas relações no direito brasileiro, Tipografia da Revista dos Tribunais, Rio de Janeiro 1924, p. XI.

DILERMANDO RAMOS VIEIRA