GUERRA SANTA DO CONTESTADO

De Dicionário de História Cultural de la Iglesía en América Latina
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Conflito ocorrido no sul do Brasil, mesclou questões sociais com religiosidade popular campesina, transformado-se em luta armada entre 1912 e 1916. O “Contestado” era uma zona litigiosa interestadual de 48.000 km², disputada por Santa Catarina e Paraná e ali, as mudanças eclesiais promovidas pelo clero ultramontano tiveram pouco influxo, pois para a população dispersa, “da mesma forma como não se conhecia o médico, não se conhecia o padre”.[1]Com isso, a religiosidade tradicional continuou intocada, autônoma, com suas práticas mágico-religiosas, ligadas ao tratamento de moléstias, e festas dos padroeiros locais.

Apareceram pouco depois “monges”, mais exatamente, leigos rezadores que se declaravam tal (e em seguida as “virgens”), que se colocavam a serviço desta mesma religiosidade. Um “monge” como João Maria de Jesus (Anastás Marcaf, seu nome verdadeiro) distribuía orações aos devotos, receitava o chás miraculosos de ervas, benzia roças para espantar gafanhotos, santificava as fontes ao lado das quais plantava uma cruz de cedro, e batizava crianças.[2]

Nesse ínterim, em 1900, a Brazil Railway Company, pertencente ao grupo norte-americano dirigido por Percival Farquhar (1864 – 1953), recebeu do Governo federal uma faixa de 30 quilômetros de largura atravessando quatro estados, para construção da futura Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande. Em 1908 a Brazil Railway começou a se instalar na região expulsando os antigos moradores, cujas terras, mais tarde, a ferrovia vendeu a colonos poloneses e alemães. Farquhar criou ainda outra empresa, a Southern Brazil Lumber & Colonization, para a qual em 1911 obteve 180 mil hectares de terra no Contestado para explorar madeira e instalar serrarias. A sede da empresa foi instalada em Três Barras, SC, em 1913, e contra ela não se podia reclamar pois o próprio vice-governador do Paraná, Afonso Alves de Camargo (1873-1958), era seu advogado.

Foi o estopim da luta até porque, no ano precedente, 8.000 homens vindos de outras partes do país para ajudarem na construção da estrada de ferro, haviam sido demitidos quando a obra atingiu União da Vitória, sem que nenhuma providência fosse tomada para que pudessem regressar. Essa massa desorientada se juntou aos camponeses sem terra do Contestado, armando emboscadas nas estradas e se organizando em grupos de bandoleiros. Freqüentemente roubava-se gado. Foi aí que entrou em cena a figura catalisadora do “monge” – João Maria no início, e, após seu desaparecimento em 1911, o mameluco gaúcho Miguel Lucena de Boaventura, que adotou o nome de “José Maria” –, clamando pelo auxílio dos céus, a quem os desvalidos iam buscar, por meio das forças sobrenaturais e nas poções de curandeiras, a solução para os seus males.[3]

Enquanto os “monges” iam fazendo prosélitos, os frades franciscanos, estabelecidos em Lages desde 1892, logo estenderam sua ação a Curitibanos e progressivamente a todo o planalto. Em 1897, o frade alemão fr. Rogério Neuhauss (1863 – 1934), se encontrou com João Maria e, apesar das tentativas de entendimento, o diálogo fracassou.[4]

Em 1911, os caboclos decidiram estabelecer um território livre, ao qual chamaram de “Monarquia celeste”. Instituiu-se então um "Quadro Santo" em Curitibanos, SC e se criou uma guarda de honra inspirada na cavalaria medieval, formada por 24 cavaleiros, chamados de “Doze Pares de França”. Novos “quadros santos” foram instituidos noutros lugarejos e o movimento ganhou uma conotação messiânica. Fazendeiros da região alertaram as autoridades e, em outubro de 1912, uma tropa de 400 militares comandada pelo capitão João Gualberto (1874-1912) atacou o “quadro santo” de Irani. No confronto, José Maria e João Gualberto tombaram, enquanto os militares fugiram, permitindo aos rebeldes de se apoderarem de suas armas e munições. A esta altura, a “virgem” Maria da Rosa, de 15 anos de idade, tornou-se chefe militar, enquanto Joaquim, de 11, assumiu a liderança de 5 mil camponeses. Os rebeldes conseguiram dominar uma área de 25.000 km² e vencer várias expedições legalistas; mas, em 1914, o Presidente Hermes da Fonseca (1855-1923) decidiu de por um ponto final naquilo. Por isso, mandou para o front o general Fernando Setembrino de Carvalho (1861-1947), che lá chegou com 7.000 mil homens. O clero, entrementes, recomendava orações pelo fim das hostilidades, causando ressentimentos nos caboclos. Pouco antes de falecer, José Maria fez um desabafo magoado: “As autoridades não fazem nada e não querem que ninguém faça. [...] Os padres mandam obedecer porque são estrangeiros, puxam a brasa para o seu assado”.[5]

Um fato, porém, contribuía para afastar a hierarquia eclesiástica dos insurgidos: a prática dos sacramentos. Os habitantes do Contestado, além de batizados, também haviam improvisado uma espécie de casamento, o que não podia ser tolerado. Ainda assim, o Pe. José Lechner tentou uma saída negociada com eles, mas seus esforços resultaram infrutíferos. Frei Cândido Spanngel tomou outra atitude: acusou os “jagunços” de serem verdadeiros bandidos, efetivamente loucos, de loucura supersticiosa, para quem bons conselhos eram inúteis.[6]

A saber, entretanto, do aparato repressivo estava sendo colocado em campo, frei Rogério procurou os rebelados em Taquaraçu para alertá-los e pedir que se dispersassem; mas, acabou sendo expulso.[7]Assim, a partir de 8 de fevereiro de 1914, começou a última fase da luta. O General Setembrino cercou os “quadtos santos”, estrangulando os rebeldes pela fome. A “virgem” Maria Rosa tombou às margens do rio Caçador no dia 28 de março de 1915 e, um a um os núcleos rebeldes capitularam, até que o Capitão Euclides de Castro incendiou o último acampamento.[8]Caindo Santa Maria em mãos do capitão Tertuliano de Albuquerque Potyguara (1873-1957) aos 5 de abril de 1915, os legalistas assumiram de vez o controle da região. Deodato Manuel Ramos, vulgo "Adeodato", último dos chefes rebeldes foi preso em agosto de 1916, encerrando a luta. O trágico saldo de cinco anos de combate resultou espantoso: vinte mil homens mortos![9]

Do ponto de vista político, a contenda terminou aos 20 de outubro de 1916, quando os “presidentes’ estaduais, Filipe Schimidt (1859-1930), de Santa Catarina, e Afonso Alves de Camargo, que passara de vice a titular do Paraná, assinaram um acordo no Rio de Janeiro. A região foi dividida, ficando Santa Catarina com 25.510 km² e o Paraná com 20.310. Os caboclos remanescentes foram abandonados à sua própria sorte, mas, certas crendices de outrora sobreviveram. Em Curitibanos os devotos transformaram o 24 de junho no dia da “Festa dos Franças”, construindo uma capela de madeira para venerá-los. Nela se colocou uma imagem do Bom Jesus, de cujas mãos pendiam fitas postas em pagamento de promessas dos devotos. O clero, nada disposto a suportar aquilo, tanto fez que a capelinha acabou sendo abandonada.[10]


NOTAS

  1. OSVALDO RODRIGUES CABRAL, João Maria, Companhia Editora Nacional, São Paulo 1960, p. 96.
  2. DOUGLAS TEIXEIRA MONTEIRO, Os errantes do novo século, Livraria Duas Cidades, São Paulo 1974, pp. 83 – 84, 88.
  3. Cf. OSVALDO RODRIGUES CABRAL, João Maria, pp. 107 – 180.
  4. Cf. DOUGLAS TEIXEIRA MONTEIRO, Os errantes do novo século, pp. 86 – 90.
  5. ELIZABETH DE FIORI CROPANI ET ALII, Nosso.Século, vol. II, Abril Cultural, São Paulo 1980, p. 21.
  6. DOUGLAS TEIXEIRA MONTEIRO, Os errantes do novo século, p. 92
  7. DOUGLAS TEIXEIRA MONTEIRO, Os errantes do novo século, pp. 92 – 93.
  8. LINCOLN ABREU PENNA, Uma história da República, Nova Fronteira, Rio de Janeiro 1989, p. 114.
  9. ELIZABETH DE FIORI CROPANI ET ALII, Nosso Século, vol. II, p. 22.
  10. OSVALDO RODRIGUES CABRAL, João Maria, pp. 313 – 314.


DILERMANDO RAMOS VIEIRA