EVANGELIZACÁO; dos afro-americanos

De Dicionário de História Cultural de la Iglesía en América Latina
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Introducáo

Síntese da miscigenacáo de razas, a América, e especialmente o Brasil, constitui uma amostra do caldeamento dos povos que para cá foram conduzidos ou induzidos, ao longo das últimas cinco centúrias. Os primeiros, tangidos pela violencia e pela arbitrariedade, expatriados toreados, cativos nas engrenagens de um sistema desumano e cruel, voraz e sedento, que da terra africana foram sugados em levas sucessivas para serem oferecidos em libacáo no altar do vício e da ganancia. Os segundos, premidos pelas agruras da pobreza e faltos de horizontes no torráo natal e que partem para o novo mundo entre a angústia da despedida e a esperanza de um novo porvir.

Eu mesmo, sou exemplo vivo do encontro dos povos e das tacas nas terras brasileiras. Pelo lado materno, sou descendente dos escravos negros que para o Estado da Bahia foram trazidos, e pelo lado paterno, sou descendente de emigrantes espanhóis, que no início do século aportaram no Brasil.

Este simpósio dos quinhentos anos da História da Evangelizacáo da América Latina, em boa hora convocado, deve, com justica, celebrar a epopéia da expansáo Ibérica «por mares nunca dantes navegados» como escreveu Camóes, para repassar os memoráveis feitos de uma época plena de vitalidade, na qual, no alvorecer do quinhentismo, como bem situa Darcy Ribeiro: «No espaco de uma geracáo, a humanidade conhece descobridores como Colombo, Vasco da Gama, Cabral e Vespúcio; conquistadores como Cortez, Pizarro e ]imenez; humanistas como Thomas Morus, Erasmo de Roterdam, Maquiavel, Garcilaso de la Vega, Vives, de Las Casas; escritores como Ariosto e Rabelais e, logo depois, épicos como Camóes e místicos como Santa Teresa; pregadores e inquisidores possuídos de fúria sagrada como Savonarola e Torquemada; reformadores e restauradores como Lutero, Calvino, Knox, Zwiglio, Münzer e Loyola; artistas geniais como Leonardo da Vinci, Rafael, Miguel Angelo, Boticelli, Ticiano, Gil Vicente, Corregio, Dürer e Holbein; astrónomos como Copérnico e Behaim; naturalistas como Paracelso e Vesalius; os papas mundanos, os mecenas florentinos e os primeiros empresários financistas modernos».[1]

Por outro lado, deve es se simpósio ser palco de uma profunda reflexáo sobre os acontecimentos que váo ocorrer em terras americanas, num entrelacamento entre evangelizacáo, catequese e colonizacáo. A questáo do afro-americano é um desafio a que nao podemos nos furtar. É amplo, complexo e doloroso, mas temos a obrigacáo de mergulhar no passado para buscar a verdade histórica da presenca dos negros no continente americano, e reconhecer e valorizar as contribuicóes por eles oferecidas a formacáo da sociedade, da cultura e da Igreja Latino-americana.

As polémicas que estáo surgindo em torno da questáo da celebracáo do quinto centenário da Evangelizacáo da América Latina justificam-se pelos aspectos contraditórios das práticas que envolvem a colonizacáo/ evangelizacáo, mas, a meu ver, correm o risco de levar-nos a uma visáo maniqueísta dos acontecimentos ocorridos. De um lado, uma visáo triunfalista e exaltatória dos fatos e das pessoas neles envolvidas; e de outro, uma visáo contestatória da colonizacáo, onde se ressaltam os efeitos da dominacáo, da violencia cultural, da negacáo da alteridade desconhecida.

A verdade com caridade é o caminho e o criterio paulino que devem guiar nossa reflexáo. Refletir sobre as licóes que o passado nos dá, os erros e os acertos, o testemunho profético de alguns, a omissáo e o silencio de outros. É tempo de reflexáo.

A expansáo européia e a colonizacáo da América

Situar a evangelizacáo dos afro-americanos envolve o vislumbrar suscinto do contexto da expansáo européia a partir do século XV na qual se entrelacam os aspectos políticos, económicos e religiosos. O século XV assinala um momento decisivo no processo de fortalecimento do poder real na Europa, mormente na península Ibérica, onde temos a dinastía portuguesa dos Avis, congregando, em torno da coroa, a nobreza, a Igreja e a burguesia para a concretizacáo da expansáo ultramarina. A uniáo dinástica entre Fernando de Aragáo e Isabel de Castela prenunciam a forrnacáo da Espanha Moderna, que é alcaneada com a conquista do Reino mouro de Granada e a incorporacáo de Navarra.

Nessa época, afirma-se paralelamente a identidade nacional, o expansionísmo mercantil em demanda dos produtos orientais, responsável direto das viagens e descobertas de novas terras e povos. Tudo isto é possível com o apoio financeiro que o capital mercantil europeu, particularmente o italiano, investe nas grandes navegacóes. Na miragem do ouro e nos locais onde sua existencia nao se evidencia prontamente, recorre-se a implantacáo da lavoura mercantil escravista. O acúcar, já ten do sua técnica de beneficiamento aprimorada no contexto do mediterráneo, será o produto aclimatado nas terras americanas. Espaco, terras férteis, clima tropical, eis as condicóes ideais propiciadas pela América as que se juntam as condicóes favoráveis do mercado europeu. Mas isto exige a máo-de-obra escrava. A África vai fornecé-la.

O aspecto religioso, nessa conjuntura, é marcado pela vigencia da cristandade com suas características básicas de uniáo entre a Igreja e o Estado, mútua ajuda, o monopólio do fiel e o uso das estruturas para tornar os homens cristáos. Muito forte na península Ibérica é o espírito do cruzadismo, desenvolvido nos séculos da reconquista, e ternos aí assentadas as premissas metodológicas da evangelizacáo dos afro-americanos.

A conjuntura européia nesse momento é marcada por aguda fome de ouro, visto que as minas do continente estáo com a producáo em declínio. Por outro lado, desde a Idade Média, parte do ouro exportado para pagar compras suntuárias. Leve-se em conta também o entesouramento da Igreja e a pilhagem dos normandos. i Isso explica a busca do metal precioso na qual váo se entrelacar as tentativas italianas, o arrojo portugués e a acáo espanhola.

Portugal empreende a série de viagens ao longo do litoral africano que gradualmente é conhecido pelos navegadores lusitanos. Da tomada de Ceuta em 1415, marco inicial da expansáo portuguesa, a viagem de Vasco da Gama para a Índia em 1498, ternos urna época marcada pelos feitos portugueses. O ouro, o marfim e os escravos, mais as especiarias orientais, sao as presas cobicadas dessas exploracóes.[2]

A viagem de Cristováo Colombo em 1492, em demanda do Oriente, dá início aos descobrimentos espanhóis: a América, o Pacífico e a primeira viagem de circunavegacáo sao os triunfos espanhóis. A colonizacáo do continente tem início. Espanhóis, portugueses, ingleses, franceses e holandeses constróem «suas Américas». O drama americano tem início assim pela conquista, colonizacáo e introducáo do cristianismo.

Os afro-americanos

O Continente negro

«Como o profeta em cinza afronte envolve, Velo a cabeca no areal, que volve O siroco feroz... » Quando eu passo no Saara amortalhada... Ai! dizem: «Lá vai África embucada No seu branco albornoz... ».[3]

A situacáo no início do século XV é marcada por um contexto variado na ampla extensáo do seu território. No norte, ao langa do Saara, ternos os territórios dominados pelo Império Otomano de Constantinopla e que compreendem o Egito e toda a regiáo do Magreb (Marrocos, Argelia, Tunísia e Trípolis). Há também um Marrocos islámico que representa um baluarte frente as incursóes portuguesas e espanholas.

Na costa ocidental da África, a partir do século XV, o expansionismo luso vai balizar uma série de pontos fortificados que vai do Cabo Verde até Zanzibar, já na costa oriental. O interior do continente é um mundo relativamente desconhecido para os europeus, no qual existem várias monarquias negras e muitas sociedades tribais, No seu conjunto, independentemente do estágio social alcancado, os povos da África praticavam a propriedade comunal da terra e variadas formas de trabalho coletivo. A propósito, Kátia Mattoso assim assinala o progresso alcancado pelos africanos: «Muito antes da época da colonizacáo, civilizacóes possuidoras de técnicas relativamente avancadas desenvolveram-se em numerosas regióes. Conhecia-se a agricultura de enxada, extensiva, ou mesmo a intensiva ao redor das chocas; a propriedade fundiária é desconhecida, mas o artesanato do ferro, do ouro, do bronze, do cobre, com seus ferreiros mistos de feiticeiros, um tanto médicos, seus poteiros - mulheres, com frequéncia -, seus tecelóes e seus lenhadores, alimentam o consumo local e também mercados mais distantes através de um comércio no qual o canuri (molusco do Oceano Índico l faz de moeda, embora a prática predominante seja a do es-cambo».[4]

Essas atividades económicas expressam tecnicamente uma ordenacáo estrutural evoluída e endógena que vai sofrer um abalo profundo, via montagem do tráfico efetivado com os europeus. É a passagem dolorosa de populacóes laboriosas e organizadas com seu passado, sua cultura e suas tradicóes. O negro africano, tornado peca chave na colonizacáo da América, tem personalidade e história. Essa história evidencia a existencia de verdadeiros imperios centralizados, confederacóes tribais, reinos mais ou menos reconhecidos por seus vizinhos, com cidades-pousadas ostentando seus ricos mercados nas trilhas do ouro, das especiarias, do marfim, do sal, dos escravos, em meio a um povo de guerreiros, pescadores, pastores, comerciantes e agricultores, cuja representacáo no drama da história nao podemos tratar no ámbito desta análise. A estrutura política da antiga Costa do Ouro, hoje república de Ghana, é um exemplo ilustrativo do desenvolvimento político africano:

«Politicamente essa sociedade se estruturava em torno de um rei, debaixo do qual estavam os chefes, subchefes e até caudilhos de pequenas povoacóes ou casarios. Havia também um sistema de impostos, tribunais de justica, e exército. Os símbolos da autoridade real ou da hierarquia eram uns banquinhos de madeira primorosamente lavrada; o próprio reino era simbolizado por um banquinho de ouro, no qual ninguém se sentava, nem se permitia que tocasse o solo».[5] Quanto a dimensáo religiosa, a África negra apresenta um quadro amplo e variado em que predominam religióes animistas ao lado do islamismo e do cristianismo. Kátia Mattoso afirma que:

«A religiáo é uma forma de organizacáo social que mantém e enquadra o africano em sua vida quotidiana. O totemismo e o culto dos ancestrais caracterizam as religióes animistas: o totemismo é um interdito alimentar que atinge um animal ou uma planta. Esse totem nao é de modo algum di-vinizado. É símbolo da solidariedade do clá e da comunidade, mas nao recebe qualquer culto particular. Em contrapartida, o culto dos ancestrais é muito vivo em toda parte. Prestado pelo chefe da família, objetiva manter a harmonía entre as comunidades dos mortos e dos vivos. Acompanham-no os mitos do sol ou da água, as religióes africanas evitam opor o mundo natural ao sobrenatural. Sao religióes de lógica dialética, que possuem o sentido da luta e da unidade entre os contrários. Consideradas por muito tempo como politeístas, estáo hoje recolocadas em suas dimensóes verdadeiras de cultos monoteístas».[6] Vemos assim, embora de modo suscinto, a riqueza cultural dos africanos e sua profunda e natural religiosidade, considerada num primeiro momento como grosseira supersticáo, quando nao manifestacóes de cultos diabólicos na ótica contextual. É nessa África parcialmente conhecida, cuja populacáo em parte já sofria o látego da escravatura, que temos que situar o tráfico negreiro, forjador da Afro-América.

O tráfico negreiro

«Ontem simples, fortes, bravos... Hoje míseros escravos, Sem luz, sem ar, sem razáo... ».[7] Os versos candentes de Castro Alves, poeta romántico brasileiro e ardoroso propugnador da emancipacáo dos escravos, ilustram com muita propriedade a tragedia da escravidáo negra e o tráfico dos africanos para a América entre os séculos XVI e XIX. Situemos o problema a partir da prática da escravidáo na África, no contexto do périplo africano e finalmente em funcáo da colonizacáo da América.

Na exploracáo gradativa do litoral africano pelos navegadores portugueses, nos seus contactos com as sociedades que habitavam a vasta regiáo litoránea entre o Senegal e a fronteira meridional de Angola, os lusitanos comprovaram a prática da escravidáo entre os costumes dos africanos. Contudo tal prática escravista diferia substancialmente da introduzida na América. É o que acentua Gorender: «Quanto a escravidáo, é fora de dúvida que já se praticava na África Negra antes da chegada dos portugueses. Mas era urna escravidáo muito diferente daquela que se imporia nas plantagens americanas. Entre os africanos, a escravidáo era patriarcal e, demais disso, acessória e subordinada como relacáo de producáo. Tinha pouca importancia nas sociedades tribais onde os cativos feitos nas guerras se incorporavam a familia extensa com certas diíerencas de status e, as vezes, com obrigacóes maiores de trabalho. Nas sociedades constituídas em Estados, os cativos serviam como domésticos na corte real e nas casas das familias nobres, como mineradores, carregadores, artesáos e agricultores dos domínios do rei e dos membros da aristocracia».[8]

Essa escravidáo africana, muito antiga e limitada, vai sofrer alteracóes com o avanzo islámico no norte da África a partir do século VIII, visto que os muculmanos váo atuar de modo decisivo no tráfico de escravos negros. A partir do século XV, junto aos traficantes muculmanos, váo comecar a atuar os traficantes europeus. Sobre essa fase do expansionismo luso na costa ocidental da África e a escravizacáo de seus habitantes, embasada em resgate da morte certa ou captura por inimigos islámicos, assim escreve Perdigáo Malheiro: «Tolerada e legitimada em Portugal e na Espanha a escravidáo dos mouros e sarracenos em represália de igual procedimento destes contra os prisioneiros cristáos, e também por um certo fanatismo religioso e censurável ódio de crencas, nao era muito de admirar que, descoberta a costa ocidental da África pelos esforcos do ilustre Infante D. Henrique, fossem os seus habitantes negros desde logo transportados a Portugal como escravos (Joao de Barros, Décadas), embora nao por ódio aos mesmos, e sim por pretendido benefício de resgatá-los de morte certa ou de cativeiro dos seus inimigos. o resgate foi, pois, O título ou fundamento originário para a escravidáo dos negros, a quem se entendia prestar assim servico imenso».[9] O certo é que essa fase do reconhecimento do litoral africano é paralela a da captura e uso do negro como escravo. Inicialmente no contexto do tráfico interno do próprio continente é urna percentagem que comenza a chegar na Europa para trabalhos domésticos. É a descoberta e colonizacáo das ilhas do Atlántico que vai demonstrar o real servico que podiam prestar os escravos negros: na producáo do acúcar. Ato contínuo, a descoberta e colonizacáo da América faz com que a experiencia adquirida por espanhóis e portugueses nas ilhas Atlánticas fosse estendida numa escala mais vasta nas terras americanas. É essa perspectiva que vai levar a intensificacáo do tráfico escravo da África para a América. Nessa nova fase, a partir do século XVI, os pioneiros foram os portugueses e os espanhóis que comecaram a levar escravos para o Caribe e o Brasil. A medida que a colonizacáo foi ampliada e apareciam mais plantacóes, outras nacóes também disputaram os lucros de tao rendoso tráfico. Ingleses, holandeses, franceses também intervieram nessa florescente empresa.

«Como cristáos, nao podemos ver sem profunda indignacáo e dor es se nefando tráfico que arrancou de seus lares e de sua terra milhóes de criaturas para consumí-las nas torturas e nos trabalhos estafantes. Sejam nossas as palavras de Joáo Paulo II: «N aquele vergonhoso comércio tomaram parte pessoas batizadas, mas que nao viveram a sua fé. Como esquecer os enormes sofrimentos causados, desprezando os direitos humanos mais elementares, as populacóes de-portadas do continente africano? Como esquecer as vidas humanas aniquiladas pela escravidáo? É necessário confessar com toda a verdade e humildade este pecado do homem contra o homem, este pecado do homem contra Deus. Desde este santuário africano da dor negra, imploramos o perdáo do cém».[10]

Sejam nos séculos XVI-XVII ou XVIII-XIX as terríveis condicóes em que eram transportados os escravos negros para as Américas foram praticamente as mesmas. Pouco antes da abolicáo final do tráfico no Brasil em 1850, um autor brasileiro escreveu:

«É durante a viagem que os negros mais sofrem, porque, a parte encontrarem-se oprimidos pela saudade, alheios ao seu destino, sao amontoados em pequenos navios, normalmente amarrados com ferros e reduzidos a urna dieta inadequada consistindo geralmente de farinha de mandioca e carne salgada, e que é dada inclusive aos que estáo doentes, o que explica a costumeira mortalidade durante as viagens. Assim, submetidos os escravos durante todo es se tempo a condicóes tao danosas, seus organismos se deterioram, e eles desembarcam em nossas praias em estado bastante deplorávels.»[11] Aqui chegados nas condicóes descritas, depois de um pequeno intervalo, eram encaminhados ao mercado e vendidos para o trabalho nas minas e na lavoura e os mais afortunados, para as tarefas domésticas. Seja como for, a chegada contínua de escravos, o seu crescimento vegetativo e seus descendentes no Novo Mundo e a mesticagem de que participaram foram responsáveis, segundo o historiador brasileiro Ciro Flamarion S. Cardoso: «Pelo surgimento daquilo que os antropólogos designam de Afro-América, ou seja, um conjunto descontínuo de regióes marcadas pela escravidáo negra, pela imigracáo forcada de africanos e por influxos culturais poderosos provenientes da África. Embora a escravidáo negra nao tenha estado ausente de regiáo alguma do continente americano, convém reservar a denorninacáo de Afro-América só para as partes de tal continente onde ela chegou a ser a relacáo de producáo predominante; onde, portanto, a presenca africana teve maior importancia. Assim, a fins do século XVIII, a Afro-América compreendia o Caribe (Antilhas, Guianas), boa parte do Brasil, porcóes relativamente reduzidas da América Espanhola continental (costa do Peru, partes do que sao hoje Venezuela e Colómbia, etc.) e o sul dos Estados Unidos».[12]

A evangelizacáo do afro-americano

Nós que vivemos neste final do século XX, que nos ufanamos de viver numa época marcada pela apologia e a defesa da liberdade, da dignidade da pessoa humana e dos direitos do homem, nao conseguimos examinar as questóes referentes a escravidáo, sem manifestar nosso veemente repúdio a tal instituicáo, que avilta a condicáo humana. Contudo é preciso reconhecer que na maior parte da história da humanidade, ela existiu e teve seus defensores. É nosso objetivo neste artigo tratar a questáo da Evangelizacáo do Afro-Americano, de modo objetivo e direto, mas envolvido no contexto da história americana, particularmente a brasileira, na época da colonizacáo.

Primeiramente é preciso situar a questáo da escravidáo a luz do direito natural; analisá-la no contexto da expansáo européia e sua liceidade e as práticas pastorais em relacáo aos escravos e seus descendentes no caso específico do Brasil. Quanto ao primeiro aspecto, ou seja, se a escravidáo é autorizada pela lei natural é hoje meramente especulativa; a negativa prevaleceu, e é o fato. Perdigáo Malheiro, em seu notável Ensaio Histórico, Jurídico Social sobre a escraoiddo no Brasil, assim destaca:

«Foi Cristo, porém, quem primeiro positiva e visivelmente consagro u os únicos verdadeiros e saos princípios, proclamando a igualdade dos homens ante Deus, e reprovando conseqüentemente a divisáo ou reparticáo deles entre senhores e escravos; estabelecendo assim em tese absoluta a liberdade de todos: doutrina pregada, ensinada, e desenvolvida pelos Apóstolos, seus discípulos.

Desde logo a filosofia tomo u outra fase; já se animava a dizé-lo com mais clareza; e Séneca, coevo de Sao Paulo, proclamava que os escravos eram homens, e recomendava que os superiores tratassem os inferiores como eles em igual condicáo desejariam ser tratados: e um imperador cristáo assentava as suas grandes reformas em Roma sobre esta pedra angular inabalável: a escravidáo é instituicáo do Direito das gentes, contrária ao Direito Natural, quer dizer, a escravidáo é um fato puramente humano, abusivo, e condenado pelo Criador».[13] Isso posto, sendo portanto contrária a lei natural recebeu, ao menos juridicamente e a luz da moral cristá, um abalo definitivo, apesar de resistir ainda por séculos. A partir da Idade Média, a escravidáo decai sensivelmente, mas nao desaparece totalmente e experimenta mesmo um certo recrudescimento com o avanzo árabe no Mediterráneo. O comércio de escravos era praticado tanto no sentido leste-oeste como de oeste para leste. Dessa maneira, ao comecar o expansionismo comercial europeu no século XV, a escravidáo está institucionalizada e sancionada pela jurisprudencia. Ela é legal e lícita em termos teóricos. O que se discutia era apenas o título justo ou injusto a apreensáo. Por título justo, entendia-se a escravidáo como substítuicáo da pena de morte para criminosos ou prisioneiros de guerra. Nesse sentido a escravidáo foi praticada no mundo inteiro e, na Idade Moderna, ainda se praticava intensamente na Europa, sobretudo com os prisioneiros muculmanos reduzidos a escravidáo.[14]

Esse procedimento evidentemente era urna represalia a escravizacáo de prisioneiros cristáos em máos muculmanas. Dessa maneira, a questáo por nós colocada de ser a escravidáo negra lícita é assunto pacífico na mentalidade da época. Juristas e moralistas sao unánimes em afirmar: «A escravidáo em si nao é imoral se respeitar a dignidade da pessoa humana; mas no modo de tratar com os escravos pode haver violacáo gravíssima da justica».[15] A Igreja através de vários papas havia condenado a escravidáo. Citemos os papas Pio II, Paulo III, Urbano VIII e Bento XIV. Mas a maioria dos documentos pontificios refere-se aos índios. Apenas a Constituicáo «Veritas Ipsa» de 02 de junho de 1537, de Paulo III, estende a condenacáo «a todos os povos dos quais a seguir, os cristáos tenham notícia» e da qual, diz Giacomo Martina, «estranhamente, os documentos dos pontífices seguintes nao fazem referencia, citando apenas o breve Pastorale Officium, de 27 de maio de 1537, limitado aos indios».[16] Portanto, a grande questáo levantada pelos historiadores é a diferenca de tratamento dado aos indios por parte dos religiosos, principalmente os Jesuítas, em relacao ao tratamento dado aos escravos negros. A resposta é dada de modo magistral pelo historiador Jesuíta padre Serafim Leite: «A resposta já foi dada muitas vezes, mas importa recordá-la urna vez mais. Porque os naturais da América eram livres. Como tais foram declarados nas leis canónicas e civis. E aos Jesuítas da América portuguesa foi confiada a defesa dessa liberdade. Esta é a razáo. Os negros vindos da África nem eram livres, nem a defesa de sua liberdade fora confiada aos padres. A escravatura africana era instituicáo vigente na África desde tempos imemoriais. Já antes da fundacáo da Companhia de Jesus, a América se inundava de escravos negros. As leis da Igreja toleravam essa escravatura, as leis civis das nacóes regulavam-na.

Todas as nacóes colonizadoras, Portugal, Espanha, Franca, Inglaterra, Holanda, entáo, e por muito tempo ainda, e com elas depois os países independentes da América, exploravam a escravatura negra, legalmente, isto é, segundo as leis da época. Aos Jesuítas nunca foi nem podia ser confiada a defesa de urna liberdade inexistente.

Em face do fato entáo irremediável da escravatura negra, restavam aos Jesuítas apenas dois caminhos; ou declarar-se contra ela e desaparecer da face da terra, renunciando a todas as demais obras de ensino, cultura e missóes, que deixariam de fazer, pois seriam logo expulsos de todas as nacóes civilizadas, sem que nisto houvesse o menor lucro para a civilizacáo, continuando na mesma a escravatura negra, fato social universalmente admitido até o século XIX, como é da historia, ou aceitá-la mitigando-a na diferenca de tratamento e exercício da caridade, combatendo perpetuamente os maus tratos contra os negros, e respeitando neles a pessoa humana, impendo-a, quando estava em seu poder, ao respeito também dos colonos, seus senhores».[17]

Sobre o mesmo assunto de modo semelhante manifesta-se Hoornaert: «Por que os rnissionários eram frequentemente defensores tao árduos dos indios enquanto nao assumiram a defesa dos africanos com o mesmo zelo? (...) Ora, a escravidáo no Brasil nunca foi uma opcáo, mas sim um percurso. Ela era estrutural. Sem escravidáo nao podia haver Brasil. Ora, os rnissionários bem podiam defender os indígenas enquanto estes eram livres, e discutir sobre a “liberdade dos indios”, mas quando se tratava de viver no Brasil, concretamente, a escravidáo era funcional. A opcáo nao era: ter escravos ou nao ter escravos no Brasil, mas sim, ter escravos ou nao viver no Brasil, pelo menos nao viver dentro do sistema colonial estabelecido no Brasil».[18] Nessas condicóes, a luz da mentalidade da época, sendo a escravidáo lícita, embora contrária ao direito natural, nao restava a Igreja outra opcáo senáo atuar pastoralmente e minorar os efeitos dessa instituicáo abominável que era a escravatura.

Foi o que foi feíto em grande parte tanto pela hierarquia como pelas várias ordens religiosas que váo atuar no continente americano. Esse trabalho pastoral já tem inicio na própria África a partir da captura dos infeliz es que caem nas malhas dessa engrenagem maldita. Aos escravos capturados e vendidos era normalmente administrado o batismo. Essa administracáo nao deixou de ser normatizada visando resguardar a livre opzao do batizando. Assim, já em 1514, o rei D. Manuel dera ordem aos senhores dos escravos que os fizessem batizar dentro de seis meses, isto quanto as criancas, Mas quanto aos adultos, acima dos dez anos, deviam respeitar-lhes a liberdade de receber ou nao o batismo.[19]

Forcoso é reconhecer que nem sempre ou quase nunca essa norma manuelina foi cumprida. O mais comum era a administracáo do batismo a todos. O historiador americano Robert Edgard Contad, citando o autor Antonio de Oliveira Mendes em seu livro, diz: «Mesmo o batismo, cerimónia que no início do século XIX era realizada por uma taxa de 300 réis por escravo, e por isso era as vezes negligenciada, foi com freqüéncia uma experiencia dolorosa. De acordo com uma testemunha, normalmente os escravos eram batizados no porto de embarque e ao mesmo tempo uma pequena cruz era gravada em cada lado do peito com um ferro quente».[20] Faz-se mister, em meio a tao tristes procedimentos por parte dos traficantes, situar o trabalho realizado na África e continuado em terras americanas pelos padres Jesuítas. Esse trabalho abrangeu seja o resgate dos escravos das prisóes muculmanas no qual destacaram-se os padres Joáo Nunes Barreto, Luís Goncalves da Cámara e o Irmáo Inácio Vogado; sejam as missóes implantadas na África, mormente em Angola. Se é certo que as casas da Companhia tambérn possuíam escravos, é preciso entender que, nas condicóes da época, nao havia outro meio de realizar tarefas domésticas. Mas esses escravos nao só tinham respeitada a sua condicáo de seres humanos, como tinham a possibilidade de alforria, segundo o regime do Antigo Testamento, depois de seis anos de servico, Mesmo na questáo do uso de escravos como moeda ou paga-mento de quaisquer transacóes, o que era uso corrente em Angola, o padre Geral Aquaviva proibiu terminantemente o envolvimento dos Jesuítas nessa questáo. O historiador Francisco Rodrigues, S J em sua obra: «História da Companhia de Jesus na Assisténcia de Portugal», em oito volumes, elucida com abundante documentacáo essas questóes. Ele é citado pelo padre Joáo E. M. Terra, em seu artigo: «África - Escravidáo - Igreja».[21]No Brasil, específicamente, a questáo da Evangelizacáo do negro teve seu ponto maior de influencia na zona rural, na lavoura mercantil escravista ou no engenho. A propósito, assim escreve Gilberto Freyre, em sua obra clássica: «No Brasil, o lugar da catedral ou igreja, mais poderoso do que o rei, foi tomado pela Casa Grande da fazenda. Nossa sociedade, como a de Portugal, foi moldada por uma solidariedade de ideais ou fé religiosa que, entre nós, compensou a frouxidao dos lacos políticos ou místicos e a ausencia de uma consciencia de raca. Mas a Igreja que afetou nosso desenvolvimento social, servindo para articular a nossa sociedade, nao foi a catedral com o seu bispo, a quem podiam recorrer os desiludidos da justica secular, nem foi a igreja distante, isolada, nem o mosteiro ou abadia para onde podiam fugir os criminosos e aonde podiam os desamparados buscar migalhas de páo. Foi a capela da fazenda».[22] É, portanto, rnais nas grandes plantations que devemos analisar a evangelizacáo e catequizacáo do escravo. Na zona rural muito mais que nos poucos núcleos urbanos é que decorre a vivencia religiosa dos escravos, mormente nas fazendas dos religiosos onde havia rnais empenho na transrnissáo da fé. Nas outras fazendas, o interesse evangelizador variava muito. Dependia do empenho dos senhores e certamente houve rnuita negligencia e desinteresse nesse aspecto. É preciso, contudo, ter presente a mentalidade da época que estava impregnada pelo espirito religioso. É o que destaca Celso Maria de Mello Pupa: «Os sentimentos religiosos no século XVIII, e primeira metade do século XIX, eram unánimes na populacáo, assim como o cumprimento de preceitos, até mesmo dos escravos que abracavam sem relutáncia a fé católica, havendo da parte dos senhores o cuidado de trazé-los e fazé-los cumprir os mandamentos e respeitar as práticas religiosas. Sao constantes os assentamentas relativos a sacramentos de escravos, batizados, confessados, casados com os brancos, tendo a diferenciá-lo os sepultamentos que se faziam no pátio da igreja, enquanto os brancos sepultavam-se no interior da matriz, até 1846».[23]

É preciso nao esquecer que onde os senhores nao tomavam essa iniciativa, os escravos nao recebiam outra formacáo religiosa, senáo a do ambiente fortemente influenciado pelos valores religiosos e de uma prática sacramentalista, carente de maior empenho catequístico. Essa situacáo tinha a agravá-la a brutalidade do trabalho imposto aos escravos, o desconhecimento da língua e a falta de empenho dos clérigos na catequese, ou mesmo o pequeno número dos que podiam dedicar-se a assisténcia religiosa dos escravos. Assim podemos concluir que foram escassos os resultados no sentido de obter deles uma verdadeira conversáo, excluídos os engenhos de religiosos.

Apesar das difíceis contingencias da época, houve interesse pastoral da Igreja em atender os escravos. Muitas foram as normas baixadas pela hierarquia e muitos religiosos tiveram, nesse particular, um empenho extraordinário. Lembremos os Jesuítas, alguns dos quais aprenderam as línguas dos escravos e chegaram a escrever e editar catecismos, como o escrito pelo Jesuíta angolano, Padre Matheus Cardoso, intitulado «Doutrina Cristá de novo traduzida na língua do Reino do Congo», Lisboa, 1624.[24]

Outros escreveram análises da condicáo dos escravos no contexto colonial brasileiro. Tais sao por exemplo as obras de dois Jesuítas italianos, os padres joáo António Andreoni (1649-1716) e Jorge Benci (1650-1708). O primeiro escreveu «Cultura e Opulencia do Brasil», publicado em 1711 e hoje considerado como fonte do mais alto valor, sob o aspecto económico e social do Brasil, no início do século XVIII. O segundo publicou a obra: «Economia Cristá dos Senhores no Governo dos Escravos» (Roma, 1705). Esse livro é a ampliacáo de um sermáo sobre as «Obrigacóes dos senhores para com os escravos» e que causou forte oposicáo por parte dos senhores escravistas. Decidido a levar avante o seu projeto literário, o padre Benci foi constrangido a deixar o Brasil pouco depois e o livro foi publicado em Roma.

Mais contundente em sua oposicáo a escravidáo foi o Jesuíta, Padre Manuel Ribeiro da Rocha, que faleceu na Bahia em 1754. Escreveu ele: «Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado. Discurso teológico-Jurídico em que se propóe o modo de comerciar, haver e possuir validamente, quanto a um e outro foro, os pretos cativos africanos e as principais obrigacóes que correm a quem deles se servir» (Lisboa, 1758). Nesse livro, Ribeiro da Rocha propunha urna solucáo genial, inspirada no ano sabático do Antigo Testamento e no exemplo dos Jesuítas da Guiné. Essa solucáo levaria gradualmente a extincáo da escravatura.

Nesta obra, Ribeiro da Rocha trata longamente dos direitos religiosos dos escravos, catequese, pastoral sacramental, etc. Sobretudo os sacramentos do batismo, crisma, eucaristía e rnatrimónio sao tradados amplamente. Verbera os fundamentos hipócritas da escravatura e o procedimento dos traficantes de escravos, que, sob pretexto de resgate dos infiéis e consequente conversáo a fé cristá, propóem a escravidáo perpétua. Contra essa hipocrisia Ribeiro da Rocha dá este veredito definitivo: «Contudo, podem estar certos, que por meio de injusticas nao quer Deus a conversáo dos infiéis; já que nao devem fazer males para que venham bens; como ali prossegue o mesmo Molina; e que nao pode haver maior iniquidade do que vender a cada um deles a reducáo a fé, e a recepcao do sagrado batismo a troco de urna injusta e perpétua escravidáo».[25] Na Colombia, nessa época, ternos o testemunho literário de tres admiráveis defensores dos negros: Alonso de Sandoval que escreveu: «El mundo de la Esclavitud negra en América». Sandoval teve dois discípulos, um Jesuíta, Sao Pedro Claver, que fez o voto de ser «escravo dos escravos» e consagrou sua vida a urna dedicacáo heróica para minorar as desgracas dos escravos. Outro discípulo de Sandoval foi o capuchinho Francisco José de Jaca de Aragón, que escreveu um livro de sessenta capítulos que é a mais perfeita, completa e vibrante condenacáo da escravidáo sobre todos seus aspectos. O livro é intitulado: «Resolucáo sobre a liberdade dos negros e seus ancestrais no estado de pagáos e, depois, já cristáos», Com argumentos filosóficos, teológicos, jurídicos e bíblicos, Jaca de Aragón prova que a escravidáo é contrária a natureza racional do homem, que viola os direitos humanos. Refuta todos os argumentos que procuram justificar a escravatura e por fim descreve longamente todas as crueldades monstruosas contra os escravos. Esse livro, que antecipava de séculos a mentalidade de sua época, foi proibido e seu autor desterrado de Cartagena e silenciado pelas autoridades reais.[26]

No aspecto prático, credita-se aos jesuítas urna iniciativa que muito contribuiu, embora nos limites da escravidáo, para o respeito a dignidade humana dos escravos e a sua prornocáo profissional. Foi a Iormacáo de fazendas onde os escravos viveriam como os índios nas reducóes. As fazendas representavam para a evangelizacáo, formacáo e pastoral dos escravos o mesmo que os colégios dos Jesuítas representavam para os filhos dos colonizadores. Típico exemplo dessas fazendas, foi a Fazenda de Santa Cruz, no Río de Janeiro, que depois da expulsáo dos Jesuítas de Portugal e do Brasil em 1759, passou a domínio da Coroa. A formacáo moral e profissional recebida nessas fazendas constituía a preparacáo mais inteligente e mais humana para a libertacáo e integracáo do negro na sociedade brasileira.

Exemplo claro disso é o que é relatado pelo historiador Clóvis Moura, no seu livro «Os Quilombos e a Rebeliáo» (Sao Paulo, 1981), em que consagra um capítulo para descrever a reivindicacáo e a consciencia do escravismo com referencia a antiga fazenda dos Jesuítas, Santana, em llhéus, na Bahia, em 1789. Nela houve urna rebeliáo dos escravos formados pelos Jesuítas contra seus novos donoso Esses escravos, diz o historiador, escreveram um tratado de paz, documento ímpar na história do escravismo brasileiro, estabelecendo junto aos seus novos senhores as condicóes sob as quais retornariam aos trabalhos. Entre outras reinvindicacóes, exigiam os rebeldes reducáo da jornada e melhores condicóes de trabalho, controle das ferramentas do engenho, terreno para su as hortas, um barco para facilitar a venda em Salvador do excedente das suas plantacóes e que os nomes indicados para feitores teriam de ser aprovados por eles. Essas reinvindicacóes nada mais eram do que as antigas regalias de que gozavam os escravos quando o engenho Santana pertencia aos jesuitas.[27]

Vemos assim que, nos engenhos e fazendas de religiosos, houve maior empenho na evangelizacáo dos escravos, mesmo via escravidáo, e o respeito a dignidade humana dos escravos amenizava os maleficios da escravatura. Nos demais engenhos e fazendas, O tratamento em geral foí rnais severo e por vezes desumano. E quanto a evangelizacáo, houve pouco empenho por parte dos senhores e capeláes, O aviltamento da pessoa dos escravos era corriqueiro e os abusos sexuais das escravas, um fato amplamente documentado. Nao obstante, houve uma catequizacáo superficial da populacáo negra.

No que diz respeito a hierarquia católica em face da escravidáo, na época colonial e mesmo imperial, o documento mais significativo é o elaborado no primeiro «Sínodo da Igreja Brasileira», que ocorreu em Salvador na Bahia em 1707. Este Sínodo diocesano deveria na verdade ter sido um Concilio Provincial que aglutinasse os poucos bispos daquela época. Contudo, como nenhum aparecesse com excecáo do bispo de Angola, foi feito um Sínodo. A convocacáo foi do arcebispo da Bahia, Dom Sebastiáo Monteiro da Vide. Esse Sínodo foi aberto a 12 de junho de 1707, domingo de Pentecostes, e durou até 08 de julho do mesmo ano. Este Sínodo decretou, em cinco livros, nada menos do que mil e trezentos e dezoito cánones, ou constituicóes como se dizia entáo.[28]Desses cánones, cerca de quarenta sao dedicados aos escravos e, apesar de nao contestarem a constituicáo da escravatura já existente «legalmente» há duzentos anos nas colonias portuguesas, contudo procuram sinceramente defender a pessoa do escravo contra os abusos e prepotencias dos senhores.[29]

As Constituicóes primeiras do arcebispado da Bahia consagram vários cánones sobre a recepcáo dos sacramentos pelos escravos e responsabilizam os senhores pelo cumprimento deles. A dimensáo social também nao foi esquecida, haja visto os cánones que tratam do repouso dominical e nos di as santificados, por parte dos escravos; do direito dos mesmos a um mínimo de subsistencia e vestimenta e do direito que tinham ao casamento, a livre escolha do seu consorte. Também as Constituicóes classificam como grave injustica e desordem moral o fato dos senhores venderem os esposos separadamente para diferentes donoso. Neste caso, as Constituicóes permitiam que se lhes aplicas se o privilégio paulino, podendo os escravos, uma vez convertidos, contrair um novo casamento. Na questáo específica do batismo, as Constituicóes requerem que os escravos com mais de sete anos nao possam ser batizados sem que livremente concordassem e pedissem o batismo, o qual deveria ser administrado depois de uma devida catequese batismal.[30]

Pator importante na catequese dos afro-americanos, foram as Irmandades religiosas, notadamente as de Nossa Senhora do Rosário, organizadas pelos escravos ou em seu favor e que váo existir em todo o Brasil. Caso interessante a esse respeito ocorreu na Bahia em 1686. O arcebispo D. Frei Joáo da Máe de Deus estimulou o preto forro Pascoal Dias a ir até Roma em defesa dos direitos dos escravos. O escriváo da Cámara Eclesiástica, a 2 de julho de 1686, passa-Ihe certidáo como delegado e procurador que era da Mesa dos Negros da Nossa Senhora do Rosário e das Confrarias ou Irmandades de Nossa Senhora do Desterro, de Nossa Senhora do Rosário da Igreja de Sao Pedro dos Pretos, de Nossa Senhora do Rosário da Matriz da Conceicáo da Praia, de duas outras Irmandades junto a Sao Bento, e a de Nossa Senhora do Rosário da Catedral. «...para que venha a Cúria Romana botar-se aos pés, em nome de todos, de Sua Santidade com urna peticáo, dizendo-Ihe o miserável em que estáo todos os negros cristáos desta e de todas as mais cidades deste Reino da América, e os grandes trabalhos que passam, sendo filhos da Igreja».[31] Os vários exemplos alinhados por nós sao suficientes para um análise conclusiva sobre a questáo da Evangelizacáo dos afro-americanos. Nao obstante o zelo pastoral de alguns bispos e sacerdotes, bem como religiosos de várias ordens que atuaram na defesa dos negros e se esforcaram em transmitir-Ihes a «Boa Nova» de Cristo, a evangelizacáo deixou muito a desejar. O que se conseguiu foi muito pouco mas, pelo menos, através da acáo caritativa cristá conseguiu-se amenizar a triste situacáo dos escravos. Em todo esse tempo que vai do século XVI ao XIX percebe-se um pano de fundo constante, qual seja o extremo malefício dessa instituicáo, que permeia, qual sombra sinistra, o cenário da Afro-América.

O sincretismo afro-brasileiro

Desde os primórdios da exploracáo do litoral da África pelos europeus no século XV e os prirneiros contactos com os africanos, tem início urna interacáo religiosa que vai levar ao sincretismo que hoje vigora em algumas regióes da América. No comeco, o desconhecimento da língua e costumes dos africanos levam os primeiros missionários a superestimarem a adesáo dos negros ao cristianismo. Em meio ao entusiasmo despertado quando tribos inteiras de africanos apareciam voluntariamente para serem batizados, observa John R. Hale:

«os missionários nao viram a princípio que esses conversos estavam apenas tomando a precaucáo de aplacar os feiticeiros da Europa. Dentro do raciocínio africano, nao havia mal algum em acrescentar as suas crencas tradicionais um novo tipo de magia. Enquanto os missionários nao falavam fluentemente as línguas nativas, tiveram considerável sucesso. Tao ardorosos se mostravam alguns dos novos cristaos que em 1518 um bispo negro foi sagrado no Congo. Mas quando os padres portugueses se tornaram suficientemente versados nas línguas locais para transmitir a idéia de que os cristáos tinham de ser bons com os seus inimigos - e, ainda pior, só podiam ter uma esposa - o entusiasmo se desvaneceu entre os africanos. Além disso, acrescente capacidade de comunicar as doutrinas sociais do cristianismo coincidiu com um tráfico mais intenso de escravos. Afrontados por esses fatos, os cristáos africanos voltaram na sua maioria aos velhos deuses».[32]

É precisamente no tráfico de escravos que temos o ponto de insercáo forcada dos africanos no cristianismo. Batizados nos portos africanos ou nas terras americanas, sem catequese, os escravos em sua grande maioria se conservaram pagáos mantendo fidelidade aos deuses africanos e seus cultos. A adesáo ao cristianismo foi feita via de regra pela imposicáo e pelo temor. Assim nao restava aos africanos outro meio para resguardar sua dignidade humana, senáo acatar exteriormente rituais e devocóes católicas. «Enquanto alguns católicos superficiais, vendo os escravos se prostrarem diante de imagens de Jesus Cristo, de Nossa Senhora ou dos Santos, pensavam que eram até bons cristáos, nao se davam conta que essas imagens serviam somente de transferencia para seus cultos avoengos. Em Jesus Cristo, por exemplo, viam a Orixalá, a grande divindade; Nossa Senhora, especialmente Nossa Senhora da Conceicáo, representava para eles a Iemanjá, a máo-d'água ou rainha do mar; Sao Jorge, Sao Cosme e Sao Damiáo e outros santos das devocóes populares da época representaram seus orixás, divindades secundárias».[33]

Assim, a medida que se intensificava a escravidáo nas terras americanas e mais escravos chegavam juntando-se aos descendentes dos primeiros africanos escravizados, por todo o período colonial e até a atualidade, tivemos a elaboracáo do sincretismo afro-americano. Contudo, nao devemos ver apenas no temor a causa da cristianizacáo superficial dos escravos. Já salientamos nesse trabalho o desinteresse de muitos proprietários em catequizar seus escravos, as transferencias contínuas dos mesmos e o pouco empenho e falta de sacerdotes em assumir essa catequizacáo dos escravos, como fatores que agravam o quadro da evangelizacáo dos afro-americanos. Nesse sentido, nao é difícil compreender como os escravos váo conservar su as crencas primitivas sob o disfarce de um cristianismo superficial e folclórico. Nem todos porém, pois nunca faltaram pretos verdadeiramente cristáos na instrucáo, nos sentimentos e nas obras.[34]

Embora o balance final da evangelizacáo do afro-americano nao seja animador, nao podemos negar o fato evidente de parcela majoritária dos descendentes dos escravos serem católicos, ao menos nominais. A eles e as outras etnias deve ser dirigido o trabalho pastoral da Igreja Latino-Americana, nessa virada do terceiro milenio. Que a comemoracáo / reílexáo propiciada por este simpósio seja um marco referencial de urna caminhada sob os parámetros da Nova Evangelizacáo proposta pelo Santo Padre.

Notas

  1. DARCY RIBEIRO, As Américas e a Civzlizazao, Editora Vozes. Petrópolis 1977, p. 52.
  2. FERNAND BRAUDEL, Civilisation Matérielle et Capitalisme, Armand Colín, Paris 1967. Apud Lean Pomer, História da América Hispano-Indígena. p. 59.
  3. CASTRO ALVES, Poesia «Vozes D'Africa». In: Poetas Románticos Brasileiros, Livraria do Centro, Sao Paulo, p. 220.
  4. KÁTIA DE QUEIRÓS MATTOSO, Ser Escravo no Brasil. Editora Brasiliense, Sao Paulo 1982, pp. 24·25.
  5. ROBERT W ALLACE, Artigo sobre a Segregacáo racial nos Estados Unidos. Revista Life en Espa¬ñol., Edicáo de 24/09/56, p. 38.
  6. KÁTIA DE QUEIRÓS MATTOSO, Opus cit., p. 28.
  7. CASTRO ALVES, Poesia « Navío Negreiro », Opus cit., p. 214
  8. JACOB GORENDER, O Escravismo Colonial, Editora Ática, Sao Paulo 1985, p. 125.
  9. PERDIGÁO MALHEIRO, A Escravidío no Brasil, Editora Vozes Ltda, Petrópolis 1976, p. 23.
  10. Trecho do Discurso do Papa na viagem feita á África em fevereiro de 1992. Semanário Il Nostro Tempo, 10/03/92, pp. 1 e 4.
  11. JOSÉ RODRIGUES DE LIMA DUARTE, Ensaio sobre a hygiene da Escravatura no Brasil. Rio de Ja¬neiro, 1984, p. 14. Apud ROBERT E. CONRAD, Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil, Ed. Brasi¬líense, 1985. Sao Paulo, p. 56.
  12. CIRO FLAMARION S. CARDOSO, A Afro-América: A Escraoidao no Novo Mundo, Brasiliense, 3' edicáo, pp. 23-24.
  13. PERDIGAO MALHEIRO, Opus cit., p. 71.
  14. J OAO E. MARTINS TERRA, S.J. Artigo: Ética Cristá e Escravidáo. Revista de Cultura Bíblica, nos. 26-27/1983, p. 47
  15. JOAO E. MARTINS TERRA, S.J. Artigo: A Evangelizacáo do Negro no Brasil. Opus Cit., p. 62.
  16. GIACOMO MARTINA, Storia Della Cbiesa, Edizione «Ut Unum Sint», Roma, p. 330.
  17. SERAFIM LEITE, S.J., Hútória da Companhia de Jesus no Brasil, 10 vals, Lisboa 1938-1950. Vol. VI, p. 350. Apud J. E. M. Terra, SJ. pus cit., p. 62.
  18. EDUARDO HOORNAERT, Historia da Igreja no Brasil. Primara Época. Editora Vozes Ltda, Petrópolis 1977, p. 258.
  19. ARLINDO RUBERT, A lgreja no Brasil. Século XVI. Livraria Editora Pallotti, Santa Maria. R.S. 1981, p. 291.
  20. ROBERT E. CONRAD, Opus Cit., p. 51.
  21. JOAO E. MARTINS TERRA. S.J., Artigo: África - Escravidáo - Igreja, Opus cit., pp. 50-60.
  22. GILBERTO FREYRE, The Masters and the Slaves. Trad. Samuel Putson, New York, Knopfand co. 1946, pp. 192-193. Apud THOMAS C. BRUNEAU, Catolicismo Brasileiro em Época de Transicáo. Ed. Lo¬yola, Sao Paulo 1974, p. 39.
  23. 2J CELSO MARIA DE MELLO PuPO, Campinas, seu Berco e ]uventude, Campinas 1969, p. 110.
  24. JOAO E. MARTINS TERRA, S.J., Artigo: A Evangelizacao do Negro no Brasil, Opus cit., p. 65.
  25. MANUEL RIBEIRO DA ROCHA, Etíope Resgatado, Lisboa 1758, 8, pp. 70-13. Apud. Joáo E. M. Terra, S.J. Artigo: Os Escravos dos Jesuítas. Opus cit., p. 85.
  26. MARTINS TERRA, E. S.J. Artigo: Os Escravos dos jesuítas. Opus Cit., pp. 83-84.
  27. CLÓVIS MOURA, Os Quzlombos e a Rebeliáo Negra. Sao Paulo 1981. Apud. Joáo E. M. Terra, SJ. Artigo: A Igreja e a Consciencia Negra Opus Cit., p. 131.
  28. PADRE OSCAR DE OLIVEIRA, O Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil. Revista Eclesiástica Brasi¬letra, Vol. 12, fase. 4, Dezembro de 1952, pp. 859-866.
  29. MARTINS TERRA, E. S.J. Artigo: Hierarquia Episcopal e Escravidáo Negra no Brasil, Opus cit., p. 79.
  30. Idem, ibidem, pp. 79-80.
  31. ARLINDO RUBERT, A Igreja no Brasil. Século XVIII. Livraria Editora Pallotti. Santa Maria. R.S. s/d., p. 306-307.
  32. JOHN R. HALE, Idade das Exploracáes. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro 1971, p. 167.
  33. ARLINDO RUBERT. Opus cit., p. 306.
  34. Idem, ibidem, p. 307.

JOSÉ GARCIA GONZALES NETO © Simposio CAL 1992