JANSENISMO NO BRASIL

De Dicionário de História Cultural de la Iglesía en América Latina
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O jansenismo chegou ao Brasil via Portugal, ainda no século XVIII. Na Metrópole, a novidade ganhou força nos tempos do Marquês de Pombal, cuja reforma pedagógica impôs nas escolas primárias o uso da tradução do Catecismo de Montpellier, elaborada pelo bispo de Évora, Dom João Cosme da Cunha (1715-1783).[1]E, não obstante fosse mais que sabido que tal Catecismo havia sido condenado pela Igreja em 21 de janeiro de 1721,[2]o alvará de 9 de outubro de 1770, publicado na chancelaria mor, o oficializaria.[3]

Pombal caiu em desgraça política após a morte do rei Dom José I em 1777, mas, como testemunhou o Núncio Apostólico, Cardeal Bartolomeu Pacca (1756-1844), a influência de sua política permaneceu. Dona Maria I (1734-1816), filha e sucessora do monarca falecido, não teve auxiliares de talento e, depois que enlouqueceu em 1792, ocupou a regência do trono o Principe João (1767-1826). Sobre ele, o Núncio Pacca deixou uma observação cáustica: “Dom João, príncipe regente, não tinha luzes e conhecimento para poder discernir e examinar por si próprio aqueles matérias; por isso foi melhor adiar e recomendar ao céu a situação, esperando melhores circunstâncias que afinal nunca vieram, e agora no Portugal dos revolucionários se colhe quanto foi então perfidamente semeado”.[4]

Daí que, seja nas últimas décadas da época colonial que no período imediato à independência, a influência do jansenismo no Brasil foi mantida. Com uma ressalva, porém: dita dissidência não sobreviveu como um sistema intelectualmente articulado, mas diluida no conjunto da herança regalista pombalina. Por isso, deixando em segundo plano as disputas teológicas, os jansenistas brasileiros o eram quase que exclusivamente sob certos aspectos, principalmente no espírito de desconfiança em relação a Roma e aos jesuítas. Alguns dos poucos seminários diocesanos de então, também sofreram a influência de tal pensamento. Foi o caso do “Seminário Nossa Senhora da Graça” de Olinda, fundado por Dom José Joaquim da Cunha d’Azeredo Coutinho (1742 – 1821). Antes que fosse aberto em 1801, o bispo elaborou seus estatutos que, ao ficarem prontos em 1798, se iniciavam com alusões jansenistas: “A natureza humana corrompida pela primeira culpa, é em extremo propensa para o erro e para os deleites terrenos…”.[5]

Um raríssimo exemplo de jansenismo “institucional” no Brasil aconteceu em Itu, SP, na comunidade dos “Padres do Patrocínio”. A referida comunidade foi fundada por um artista barroco pardo e pobre, chamado Jesuíno do Monte Carmelo (1764-1819), que depois de viúvo, construiu a bela igreja de Nossa Senhora do Patrocínio, e na casa que tinha ao lado, estabeleceu uma espécie de cenóbio. Acompanharam-no nessa experência seus dois filhos (os padres Elias e Simão), um sobrinho por afinidade (Pe. João Xavier), e mais um seu protegido (Pe. Manuel da Silveira), que constituiram o núcleo do se transformaria numa confraria de ascetas.

O próprio Jesuíno seria ordenado padre pelo bispo de São Paulo, Dom Mateus de Abreu Pereira (1742-1824) e, outros sacerdotes seculares, como os padres Diogo Antônio Feijó (a partir de 1818) e Antônio Joaquim de Melo (futuro bispo de São Paulo) se uniriam à iniciativa. Como observaria o cônego Fernandes Pinheiro (1825-1876), os princípios da escola galicana, largamente difundidos no Brasil, misturados a certas concepções de Jansênio, comprometeram a ortodoxia da comunidade, ainda que, como salienta, a retidão de alguns dos seus membros, a exemplo do Pe. Antônio Joaquim de Melo, tenha se mantido intacta. Mesmo assim, ele não hesitou em qualificar a inteira experiência como a “Port Royal do Brasil”.[6]

O escritor Mário de Andrade (1893-1945) também endossou esta tese, salientando que no Patrocínio os padres se entregavam a ardores místicos exaltadíssimos, a disciplinas ferozes, em que Feijó se tornou um dos mais ardentes, deixando muitas vezes o chão maculado de sangue pecador. A experiência, contudo, foi breve: depois da morte do Pe. Jesuíno em 1819, alguns membros da comunidade, principalmente Feijó, tendo se tornado conhecidos, se deixaram seduzir pela política liberal, e procuraram aliciar o clero da comarca para as idéias em voga. Nem todos seguiram a nova orientação, motivo pelo qual Pe. Antônio Joaquim de Melo se retirou para Piracicaba. O colapso final aconteceu quando Feijó, cujos conhecimentos não iam além do rudimentar, cometeu a temeridade de aceitar o desafio de frei de Santa Justina para um debate aberto sobre filosofia e teologia. O frade o derrotou de forma humilhante, e a comunidade, desmoralizada, se dissolveu.[7]Outras formas rústicas de jansenismo, no entanto, sobreviveriam, como aquele estranho costume de determinados padres, que desaconselhavam a participação constante à comunhão, por ser algo “abusivo”, recomendando-a só na hora da morte.[8]

A reforma eclesial realizada pelos bispos “ultramontanos” no Segundo Império, eliminou de vez os resquícios de jansenismo no país. Bispos como Dom João da Purificação Marques Perdigão (1779 – 1864), nomeado titular de Olinda em 1833, foram tão anti-jansenistas quanto anti-regalistas e no tempo deles, ditas correntes heterodoxas passaram a ser combatidas de modo explícito. A literatura eclesiástica “ultramontana” ganhou consistência, produzindo nomes de relevo como o Pe. Luís Gonçalves do Santos (1767-1844) e outros mais. Isso levou a uma defesa apaixonada da ortodoxia, como bem o demonstram a obra Memória histórica e biográfica do clero pernambucano, de Lino do Monte Carmelo Luna, editada em 1857. O autor, não poupava críticas ao Pe. Feijó, sustentanto que aquela foi “uma época sobremaneira assustadora para o Brasil”, e as mudanças que dito padre e seus amigos propuseram como sendo “revoltantes”. Segundo ele, dito grupo quis “criminosamente inocular na disciplina as inovações anti-católicas estatuídas por um pseudo Sínodo de Pistóia…”.[9]

Nessa nova mentalidade eclesial predominante, seja no clero que no laicato, já não havia mais espaço para nenhuma influência jansenista no Brasil que, de fato, desapareceu. Como se diria em 1866, o episcopado de então estava renovado, com sacerdotes que foram beber em Roma as “sãs doutrinas” do Catolicismo sem mescla, “escoimado do antigo servilismo galicano”.[10]

Notas

  1. HELIODORO PIRES, A paisagem espiritual do Brasil no século XVIII, São Paulo Editora Ltda, São Paulo 1937, p. 101.
  2. Cf. CARLOS MOREIRA AZEVEDO ET ALII, Dicionário de história religiosa de Portugal, vol. III, Printer Portuguesa, Rio do Mouro 2000, p. 74.
  3. ATT, Leis – livro 11, pp. 24 – 25.
  4. BARTOLOEMO PACCA, Notizie sul Portogallo con una breve relazione della Nunziatura di Lisbona, dall’anno 1795 fino al 1802, Tipografia di Domenico Ercole, Velletri 1855, pp. 17 – 25, 62 – 66.
  5. JOSÉ JOAQUIM DA CUNHA D´AZEREDO COUTINHO, Estatutos do seminário episcopal de Nossa Senhora da Graça da cidade de Olinda de Pernambuco, ordenados por Dom José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, Tipografia da Academia Real de Ciências, Lisboa 1798, pp. 1 – 2, 50 – 62.
  6. JOAQUIM CAETANO FERNANDES PINHEIRO, “Os padres do patrocínio ou o Porto Real de Itu”, em: RIHGB, tomo XXXIII, Rio de Janeiro 1870, pp. 31 – 32, 141 – 143.
  7. MÁRIO DE ANDRADE, Padre Jesuíno do Monte Carmelo, Publicações do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro 1945, pp. 21, 25, 29, 39 – 40, 43 – 44.
  8. ANTENOR DE ANDRADE SILVA, Os Salesianos e a educação na Bahia e em Sergipe – Brasil, 1897 – 1970, Tipografia Abigraf, Roma 2000, p. 32.
  9. L.INO DO MONTE CARMELO LUNA, Memória histórica e biográfica do clero pernambucano, Typ. F.C. de Lemos e Silva, Recife 1857 pp. 52, 55.
  10. BOANERGES RIBEIRO, Protestantismo no Brasil Monárquico, Livraria Pioneira Editora, São Paulo 1973, p. 47.

DILERMANDO RAMOS VIEIRA