REESTRUTURAÇÃO ECLESIAL NA REPÚBLICA VELHA

De Dicionário de História Cultural de la Iglesía en América Latina
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Separada do Estado em 1890, a Igreja no Brasil se encontrou, enfim, livre para reorganizar-se; mas, a empresa não era fácil, dadas as limitações das estruturas eclesiásticas nacionais de então. A começar pelo episcopado, existia no pais uma única arquidiocese, Salvador da Bahia, e onze dioceses sufragâneas (Rio de Janeiro, Olinda, São Luís do Maranhão, Belém do Pará, Mariana, São Paulo, Cuiabá, Goiás, Porto Alegre, Fortaleza e Diamantina). Isso se deveu ao regalismo imperial que, nos seus 67 anos de duração, consentiu na ereção de apenas três jurisdições diocesanas: Porto Alegre (1848), Fortaleza (1854) e Diamantina (1854).[1]

Diante desse fato, a primeira reunião dos bispos após a queda da monarquia, realizada em São Paulo no ano de 1890, delegou a Dom Antônio de Macedo Costa o encargo de tratar o assunto em Roma. Ele o fez com presteza e, depois de analisar as propostas que apresentou, o Papa Leão XIII, com a Bula Ad universas orbis ecclesias, de 27 de abril de 1892, dividiu o território brasileiro em duas partes, constituindo as províncias eclesiásticas do Norte e do Sul com sedes metropolitanas em Salvador e no Rio de Janeiro, cada uma delas tendo duas novas dioceses criadas naquele mesmo ano.

A primeira tinha como sufragâneos os antigos bispados de Belém, Maranhão, Fortaleza, Olinda e Goiás, e os novos do Amazonas (desmembrado do Pará) e Paraíba (que abrangia também o estado do Rio Grande do Norte, ambos separados da diocese de Olinda). À segunda confiou, como sufragâneos, os bispados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Mariana, Diamantina e Cuiabá, junto com as novas sedes de Niterói (compreendendo parte do estado do Rio de Janeiro mais o Espírito Santo) e Curitiba (abarcando os estados do Paraná e Santa Catarina). A primeira, Curitiba, foi desmembrada da diocese de São Paulo, e a segunda, Niterói, da diocese do Rio de Janeiro.[2]

Desse momento em diante o número de dioceses cresceu continuamente. Em 1895 foi desmembrada a diocese do Espírito Santo da de Niterói, e nos anos seguintes várias outras seriam erigidas: Maceió/ PB (1900), Pouso Alegre/ MG (1901), Teresina/ PI (1905), Campanha/ MG (1907), Florianópolis/ SC (1908), Botucatu/ SP (1908), São Carlos do Pinhal/ SP (1908), Ribeirão Preto/ SP (1908), Taubaté/ SP (1908), Campinas/ SP (1908), Natal/ RN (1909), Aracaju/ SE (1910), Pesqueira/ PE, Montes Claros/ MG (1910), Corumbá/ MT (1910), São Luís de Cáceres/ MT (1910), Pelotas/ RS (1910), e Uruguaiana/RS (1910). Novos arcebispados também foram erigidos: Mariana, aos 1-5-1906; São Paulo, aos 7-6-1908; Cuiabá, aos 10-3-1910; e Porto Alegre, aos 15-8-1910. A criação de novas jurisdições não arrefeceu nos anos 10, e, em 1922, ano em que se comemorou o primeiro centenário da independência do Brasil, o quadro diocesano no país mostrava-se completamente transformado: eram 13 arquidioceses, 39 dioceses, 7 prelazias, e 3 prefeituras apostólicas.[3]

Ao mesmo tempo, também se reorganizou a disciplina e a formação do clero, o que se constituiu noutro grande desafio, considerando-se que, em 1890, em todo o Brasil havia apenas cerca de 700 padres, 9 seminários maiores e 11 menores.[4]Graças, porém, aos esforços empreendidos, a instituição ou ampliação de casas de formação diocesanas aumentou em ritmo acelerado. Mais uma vez a atuação da Santa Sé foi determinante, pois, além de estimular o estabelecimento de novos seminários, encorajava Jesuítas e Lazaristas a provê-los de pessoal. Acabada a belle époque, os grandes seminários já estavam chegando a 27, e só não eram mais numerosos devido aos rigores na seleção das vocações.[5]

Dentre os centros formativos para o clero diocesano do período, destacou-se o Seminário Provincial Nossa Senhora da Conceição, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, instituído aos 11 de março de 1913. Dirigido pelos jesuitas, ele abrangia não só o território gaúcho, mas, até 1926, também o estado de Santa Catarina. Naquela data, ao ser criada a Arquidiocese catarinense, permaneceram somente os gaúchos. Nos 43 anos em que os jesuítas estiveram lá, foram formados naquela veneranda instituição a impressionante cifra de 834 sacerdotes, muitos dos quais se tornariam arcebispos e bispos, e mesmo alguns cardeais.[6]O clero formado nas primeiras décadas republicanas era bastante intelectualizado e austero, além de cioso das próprias precedências; mas, nuericamente falando, ficou bem abaixo do esperado, cabendo aos europeus a função de suprir parcialmente a carência. Um exemplo disso era São Paulo onde, em 1910, havia apenas um seminarista para cada 13.000 fieis da arquidiocese.[7]

A reestruturação colocada em ato também atingiu, como era de se esperar, a vida religiosa. No começo da república os regulares no Brasil eram escassos, sendo então os Capucinhos a maior ordem. Haviam já conquistado certa relevância os Lazaristas, os Salesianos, os Jesuitas (que regressaram ao país em 1842), os Dominicanos e algumas congregações femininas de vida ativa, como as Filhas da Caridade. Por outro lado, as velhas ordens religiosas “brasileiras” – Beneditinos, Carmelitas, Mercedários (que já se extinguira) e Franciscanos Alcantarinos – se encontravam reduzidas a poucas dezenas de anciãos. O Papa Leão XIII, com um decreto emanado pela Sagrada Congregação de Negócios Eclesiásticos expedido no dia 3 de novembro de 1891, determinou que ficassem sob a obediência imediata, tanto material quanto espiritual, dos bispos diocesanos;[8]mas, a iniciativa mostrou-se inadequada.

Afinal, as velhas ordens foram “refundadas” por meio de confrades europeus provenientes da Itália, da Espanha e da Alemanha. Paralelamente, novas congregações de ambos os sexos chegavam em profusão, ainda que seu agir, em determinadas circunstâncias, tenha suscitado objeções. As reservas, no caso, partiram inclusive de um personagem acima de qualquer suspeita: o Núncio Apostólico Giuseppe Aversa. Ele lamentava que, em muitos casos, contrariando o desejo inicial de tantos prelados diocesanos, muitos regulares tendiam a se concentrar nas grandes cidades, não raro priorizando o atendimento à classe alta, e deixando de lado os pobres. Monsenhor Aversa apontava exceções, como os capuchinhos e franciscanos, mas sem deixar de acrescentar outra ressalva: sendo ditos religiosos estrangeiros, sequer faziam caso de aprender a falar bem o português.[9]

Nenhuma atitude dos religiosos foi, contudo, mais discutível que aquela de rejeitar sistematicamente vocacionados negros e mestiços, coisa que fez praticamente todos os regulares europeus chegados ao Brasil na República Velha. Apesar disso, eles se tornaram o grande motor da renovação líturgica implantada no Brasil. O ritual austero e solene valorizou a introspecção, em que as melodias obedeciam às prescrições dos manuais de cantos espirituais. Entre as obras então editadas, se destacaram o livrinho denominado Arte do Cantochão ou canto litúrgico, publicado no Rio em 1896, e as composições musicais dos franciscanos alemães Pedro Sinzig (1876 – 1952) e Basílio Roower (1877 – 1958), que seguiam o novo espírito. Fazem parte das criações dessa época o Benedicte, manual de cânticos sacros em português e latim (com um apêndice de orações), e o livrinho Cecília, de 1910, com texto revisto pelo Conde Afonso Celso, que recebeu aprovação do Núncio Apostólico, do Cardeal Arcoverde e de mais sete bispos.[10] Outro grande âmbito onde a renovação eclesial se fez sentir foi aquele do laicato, no qual, em boa parte dos casos, as mulheres se tornaram as protagonistas. Não faltaram razões para tanto: as donzelas saídas dos “bons colégios” católicos, cujo número crescia sempre, e as paroquianas de um modo geral, conservavam então os valores da geração precedente e sua conduta moral, ao contrário da masculina, era considerada ótima. Por mérito, portanto, de moças e matronas piedosas, a vida interior das famílias era sóbria, e as virtudes das devotas, associadas à estabilidade do lar mostraram ser as grandes reservas da catolicidade brasileira.

Arcoverde, quando elevado ao cardinalato, intuiu o quanto oportuno era valorizar esse potencial e, em 1920, encarregou Monsenhor Maximiano, seu vigário geral, de fundar a Associação das Senhoras Brasileiras.[11]Outros bispos seguiriam análoga estratégia: Dom Leme santificou o dia da família, e permaneceu diretor da Associação das Mães Cristãs; enquanto que Dom Cabral, valorizando a mesma associação, instruiu os padres da sua diocese a prestigiá-la, porque, segundo ele, a mesma era providencial para “realizar maravilhosas transformações na organização escolar, e em todos os departamentos do ensino público e particular”.[12]

Ao mesmo tempo, irmandades e confrarias foram enfim submetidas pela autoridade eclesiástica, até porque, um decreto baixado pela Sagrada Congregação do Concílio dirigido especificamente para o Brasil aos 18 de agosto de 1894, resolveu por um ponto final na questão: “Os sodalícios e as outras associações eclesiásticas de qualquer gênero que sejam, por isso mesmo que recebem da Igreja sua vida e sua norma, devem absolutamente estar sujeitos àqueles que foram propostos por instituição divina ao governo da mesma Igreja, e subordinados à sua autoridade”.[13]

Dentre as novas associações caritativas laicais, teve um papel particularmente importante a Conferência de São Vicente de Paulo, estabelecida ainda no tempo do Império por Dom Romualdo Seixas, no ano de 1849, e que se havia estendido por todo o país.[14]A embrionária Ação Católica foi outra grande força emergente e, desde o início, conseguiu tanta popularidade que se tornaria nas décadas sucessivas um dos maiores baluartes da Igreja no Brasil. Também se formou uma bem articulada intelectualidade católica, composta de nomes como Carlos de Laet (1847-1927), Eduardo Prado (1860-1901), Antônio Felício dos Santos (1843-1931), Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior (1860-1938), Joaquim Nabuco (1849-1910), e na última fase de sua vida, Rui Barbosa (1849-1923).

Para estabelecer estratégias comuns, clero e laicato culto organizaram a nível nacional três grandes congressos. O primeiro deles aconteceu em Salvador/ BA, no ano de 1900; o segundo no Rio de Janeiro em julho de 1907; e o terceiro em Petrópolis, no ano de 1909. Ditos congressos deram consistência à ação dos leigos devotos que levaram para a vida pública suas convicções. Minas Gerais foi um outro centro da reação católica; mas, a apologética se estendeu às demais unidades da Federação, graças também ao apoio decisivo da imprensa confessional. Novas revistas mensais surgiram, com destaque para a Ave Maria, lançada em São Paulo pelos clarentianos em 1898, seguida da Santa Cruz publicada também em São Paulo pelos salesianos a partir de 1900, e a Vozes de Petrópolis dos franciscanos, fundada em 1907. Em 1911 os franciscanos criariam a Editora Vozes, com publicações das mais variadas para os católicos do Brasil.

Ao lado das revistas, os jornais confessionais também se multiplicaram: em 1905 o jornalista Felício dos Santos fundaria no Rio de Janeiro o diário União, que foi a primeira tentativa da Igreja de editar um periódico nacional. Esta aspiração jamais se concretizou, mas sempre no Rio, outra importante publicação – A Cruz – funcionaria de 1876 a 1972. Nos mais diversos ângulos do país apareceram jornais religiosos como Voz do Paraná; o Estrela Polar, de Diamantina (fundado em 1902); Lar Católico, de Belo Horizonte (fundado pelos verbitas em 1912), A cruz, de Cuiabá (1912), e Voz de Nazaré, no Pará (a partir de 1913).[15]

No ano de 1910 seria instituído o Centro da Boa Imprensa sediado em Petrópolis, com o propósito de coordenar a atividade jornalística católica a nível nacional. A organização não conseguiu realizar todos os seus objetivos, mas, em 1924 contava com 772 afiliados em todo o país. Por isso, Dom Antônio dos Santos Cabral (1884-1967), nomeado primeiro bispo de Belo Horizonte em 1921, no ano de 1925, anteviu a possibilidade de um novo salto, ou seja, o reconhecimento oficial do Catolicismo no Brasil pelas instituições leigas governativas. Foram palavras suas: “Parece-nos ter soado o momento de oferecermos a este cometimento de equilibrado e sadio patriotismo, em que se inspiraram os homens públicos de Minas, o concurso de nosso aplauso e bem avisada solidariedade. [...] Ocorre-nos também o indeclinável dever de uma posição leal e decisiva, em prol da unidade de objetivo e de ação, ao lado deste Chefe tão valoroso quão ponderado”.[16]


Dom Cabral sabia porque o dizia, pois em Minas, a estratégia estava dando frutos, se se tem presente que o novo Regulamento de Ensino do Estado permitiu o ensino do catecismo no próprio recinto escolar, e os professores advertidos que a religião Católica era professada pela maioria do povo mineiro, não lhes sendo permitido qualquer referência menos respeitosa a ela.[17]

Pesou, no caso, também a militância de talentosos intelectuais que se converteram. Dentre eles merecerm uma menção especial João Pandiá Calógeras (1870 – 1934), Jackson de Figueiredo Martins (1891 – 1928), e Alceu Amoroso Lima (1893 - 1983). Em 1922, tendo Jackson de Figueiredo a frente, a nata da intelectualidade católica aglutinou-se no Centro Dom Vital, que era tido como uma instituição leiga de corte confessional conservador, por atacar sem tréguas o socialismo e as idéias liberais do tenentes. Ao propor uma forma de governo forte, fora dos círculos eclesiásticos os membros do Centro Dom Vital ficariam conhecido como “direita católica”.[18]Tamanho empenho daria seus frutos na década seguinte, quando muitos dos ideais católicos de então se concretizariam.

NOTAS

  1. Manuel Barbosa, A Igreja no Brasil, Editora e Obras Gráficas A Noite, Rio de Janeiro 1949, pp. 25 – 26.
  2. Dilermando Ramos Vieira, O processo de reforma e de reogranização da Igreja no Brasil (1844-1926), Editora Santuário, Aparecida 2007, p. 427.
  3. Antônio Alves Ferreira Santos, A arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, Tipografia Leuzinger, Rio de Janeiro 1914, pp. 18 – 19; Manuel Barbosa, A Igreja no Brasil, 37 – 49.
  4. Thomas Charles Bruneau, O Catolicismo brasileiro em época de transição, Loyola, São Paulo 1974, p. 69.
  5. Thomas Charles Bruneau, O Catolicismo brasileiro em época de transição, pp. 68 – 69.
  6. Zeno Hastenteufel, História dos cursos de teologia no Rio Grande do Sul, EDIPUCRS, Porto Alegre 1995, pp. 15 – 16.
  7. Manoel Isaú Souza Ponciano Santos, Luz e sombras, Salesianas, São Paulo 2000, p. 55.
  8. ASV, Monitor Católico (3-1-1892), em: Nunciatura Apostólica no Brasil, fasc. 345, caixa 71, doc. 11, fl. 79.
  9. ASV, “Importante relatório sobre as condições religiosas e civis da República”, em: Nunciatura Apostólica no Brasil, caixa 138, fasc. 694, doc. 1, fl. 136.
  10. Américo Jacobina Lacombe et alii, Brasil 1900 - 1910, Gráfica Olímpica Editora, Rio de Janeiro 1980, pp. 22 - 23.
  11. Maximiano de Carvalho Silva, Monsenhor Maximiano da Silva Leite, Casa Cadorna, São Paulo 1952, p. XXIII.
  12. Antônio dos Santos.Cabral, A Igreja e o Ensino, Imprensa diocesana, Belo Horizonte 1925, pp. 19 – 20.
  13. ASV, “suspensão da irmandade”, em: Nunciatura Apostólica no Brasil, fasc. 424, caixa 86, fl. 81.
  14. Luigi Lasagna, Epistolario, vol. II, Libreria Ateneo Salesiano, Roma 1995, p. 22.
  15. Pontifícia Commissio pro América Latina, Os últimos cem anos da evangelização na América latina, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2000, pp. 1411 – 1413.
  16. Antônio dos Santos Cabral, A Igreja e o ensino, pp. 3 – 4.
  17. Antônio dos Santos Cabral, A Igreja e o ensino, pp. 3 – 4, 18.
  18. Elizabeth de Fiori Cropani et alii, Nosso Século, vol. II, Abril Cultural, São Paulo 1980, p. 205.

DILERMANDO RAMOS VIEIRA