REVOLUÇÃO DOS PADRES

De Dicionário de História Cultural de la Iglesía en América Latina
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Apelativo cunhado por Manuel de Oliveira Lima para qualificar a revolta que teve como centro o Pernambuco em 1817,[1]foi adotado por outros estudiosos do assunto. Alguns deles, tendo presente o papel de liderança e incitamento levado a cabo por certos sacerdotes, peferem dizer “Revolução maçônica dos padres”.[2]Essa última terminologia foi inclusive assumida pelo historiador maçom Arci Tenório d’Albuquerque.[3]

Faz sentido: o regalismo “institucional” favorecia a quebra da disciplina e a perda das referências doutrinárias, e isso explica a facilidade com que tantos padres ingressavam nas “grandes lojas” e aderiam ao liberalismo exaltado da época. Em se tratando da diocese de Olinda, a própria formação ministrada no “Seminảrio Nossa Senhora da Graça”, fundado por Dom José Joaquim da Cunha d’Azeredo Coutinho (1742 – 1821), estimulava tal comportamento. Recorda-se que o corpo docente da instituição, cujas atividades se iniciaram aos 16 de fevereiro de 1800, era constituído por padres-professores alinhados com o regalismo de corte liberal da universidade de Coimbra.

Destacaram-se, nesse particular, Pe. José de Almeida Nobre, primeiro reitor, e Padre José Pinto de Carvalho, vice-reitor, mais os frades José Laboreiro, professor de teologia dogmática; Miguel Joaquim Pegado (matemática) e Bento da Trindade (Teologia moral). Clérigos brasileiros também seriam admitidos, mas eram quase todos maçons e liberais, a exemplo do Pe. Miguel Joaquim de Almeida e Castro (1768-1817), vulgo “Miguelinho”, professor de retórica e poética, bem como do Pe. João Pessoa Ribeiro de Melo Montenegro (1766-1817), mestre de desenho. Da mesma linha era Frei José da Costa Azevedo (filosofia) e o beneditino Pe. Miguel do Sacramento Lopes Gama (1791-1852), vulgo “Padre Carapuceiro” (que se tornaria padre secular em 1838).[4]

A influência do seminário de Olinda foi enorme, pois, além de ser a única instituição de ensino superior local, era aberto aos leigos, tornando-se, portanto, o maior centro difusor do liberalismo radical do nordeste brasileiro. Um dos seus ex-alunos, o padre maçom Francisco Muniz Tavares (1793-1875), descreveria o fato com louvores: “A mocidade pernambucana não podia deixar de ilustrar-se dirigida por tão zeloso reitor. Saiam daquele seminário não só instruídos e exemplares pastores que formavam as delícias das ovelhas, das quais se encarregavam, como também jovens hábeis a empregos”.[5]

Nesse clima de efervescência ideológica, dois fatores acirraram ainda mais os ânimosː a seca que se abateu sobre o Pernambuco em 1816 e a alta carga de impostos instituídos para manter a corte portuguesa estabelecida no Rio de Janeiro. Contudo, como salienta Jônatas Serrano e Marcílio Lacerda, há muito tempo já se conspirava, pois “os pedreiros livres sonhavam a demolição da monarquia e a construção de novo edifício social”.[6]

A querela se tornou pública quando o governador português, Caetano Pinto de Miranda Montenegro (1748-1827), graças à delação do ouvidor José da Cruz Ferreira, recebeu no dia 1º de março de 1817 denúncia do complô em ato, e ordenou a prisão de onze conspiradores. Um deles, o Capitão maçom José de Barros Lima, vulgo “Leão Coroado”, resistiu à tentativa de captura e matou a golpes de espada o Brigadeiro português Manuel Barbosa de Castro. A partir daí, no dia 6 de março seguinte, domingo de Páscoa, partindo da fortaleza das Cinco Pontas, a rebelião ganhou as ruas e logo criou um conselho de guerra. O governador Caetano Pinto, junto de sua família, se refugiou no forte do Brum, mas teve que capitular pouco depois, pela impossibilidade de oferecer resistência. Os revoltosos o pouparam e ele embarcou para o Rio de Janeiro.[7]

Cinquenta e sete eclesiásticos engrossaram as fileiras dos revoltosos, número este deveras expressivo, considerando que a diocese de Olinda contava com pouco mais de 120 presbíteros. E não só: alguns dos envolvidos tiveram até mesmo ação militar. Foi o que fez Pe. Antônio de Souto Maior Bezerra de Meneses, vigário de Goiana, morto depois nas prisões da Bahia, bem como frei João da Conceição Loureiro, guardião do convento franciscano de Santo Antônio de Recife, mais os padres João Gomes de Lima e Francisco de São Pedro, o “Cachico”.[8]

Os 17 cabeças do movimento revolucionário, ainda no dia 7 de março se reuniram na Casa do Erário de Recife e elegeram um governo provisório composto por cinco membros, a saber: Padre João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro, representante do mundo eclesiástico e ao mesmo tempo governador provisório;[9]Capitão Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, da parte dos militares; José Luís de Mendonça, a nome da magistratura; enquanto que, da parte da agricultura foi escolhido o Coronel Manoel de Araújo, e pelo comércio, a preferência recaiu sobre Domingos José Martins.[10]Três dias mais tarde, Pe. Luiz José de Albuquerque, vigário da freguesia de Santo Antônio do Recife celebrou um solene Te Deum em ação de graças, convidando para o evento os cinco membros do governo provisório, que de boa vontade participaram.[11]

Os novos donos do poder em Pernambuco também proclamaram a república, que adotou uma bandeira própria, e aboliram os impostos pagos ao Rio de Janeiro. Foi igualmente aprovada uma lei orgânica que introduziu medidas liberais como as liberdades de opinião e de imprensa e os direitos individuais, malgrado proibisse ataques ao Catolicismo. O deão de Olinda, Manuel Vieira de Lemos Sampaio, que era também governador da diocese, inspirando-se em Rousseau, fez publicar uma pastoral, subscrita por todo o cabido, sustentando não ser a revolução em curso contrária ao Evangelho. O motivo, segundo ele, era que a posse e o direito da Casa de Bragança se fundavam em um contrato bilateral, de que estavam desobrigados os povos da lealdade jurada, por ter tal dinastia faltada por primeiro às suas obrigações.[12]

Como se viu, muitos desses padres e líderes rebeldes eram maçons e, o inusitado conúbio entre catolicismo e “grandes lojas”, produzia comportamentos insólitos. Domingos Teotônio Jorge, por exemplo, numa circular expedida aos capitães-mores no dia 27 de março de 1817, eliminou as referências cristãs das invocações, dando, porém, ao seu Deus impassível, um comportamento providente que, como se sabe, era negado pelas organizações maçônicas: “O Supremo Arquiteto do Universo vos ilumine e ajude e vos fortifique para o bem e glória de nossa cara pátria...”.[13]

Paralelamente, a revolução ganhou a adesão da Paraíba no dia 15 de março de 1817 e do Rio Grande do Norte no dia 25 de abril sucessivo. Os sublevados, no intento de conseguir a agregação de mais capitanias e, por extensão, mais recursos para a sua luta, enviaram emissários a outros lugares; os resultados, porém, foram desastrosos. Para o Ceará partiu o subdiácono José Martiniano Pereira de Alencar (1794-1860), que acabou preso no Crato no dia 11 de maio; e para a Bahia seguiu o Pe. José Inácio Ribeiro de Abreu Lima, chamado de “Padre Roma” (1794-1869) que, reconhecido ao chegar a Salvador, foi preso no dia 26 de março, sendo executado sumariamente três dias depois num lugar chamado Campo da Pólvora.[14]

A reação armada dos realistas tampouco tardou. Ainda no final de março, Dom Marcos de Noronha e Brito (1771-1828), oitavo Conde dos Arcos, governador da Bahia, preparou um ataque em duas frentes: por terra enviou uma tropa, e por mar uma pequena frota, formada por um buque e duas corvetas, conseguindo esta última bloquear o porto do Recife no dia 16 de abril de 1817. Entrementes, também no princípio de abril, uma esquadra partira do Rio de Janeiro sob o comando de Rodrigo José Ferreira Lobo, juntando-se à precedente no dia 23. Em seguida, o contingente repressor desferiu violento ataque contra os revoltosos, sendo os governos da Paraíba e do Rio Grande do Norte os primeiros a cair.

O Pernambuco acabou tendo igual sorte e assim, após 74 dias de duração, a república rebelde sucumbiu. Luís do Rego Barreto (1777-1840) foi imposto como governador e capitão geral do Pernambuco em 26 de junho de 1817 e, depois de organizar uma comissão militar presidida por ele mesmo, levou a cabo feroz repressão que prendeu e enviou para Salvador os principais envolvidos. No navio Carrasco foram mandados 71 e outros 30 na corveta Mercúrio.[15]Rego Barreto também fez executar muitos dos líderes, confiscando os seus bens e realizando inumeráveis prisões. Tudo isso aconteceu num rito sumário sem direito a apelação.[16]

O clero não foi poupado. No Recife, dentre outros, foram mandados para a cadeia o pároco do Cabo, Pe. Venâncio Henrique de Rezende (1784-1866), os dois vigários de Santo Antônio e da Boa Vista, o guardião do convento de São Francisco (frei João da Conceição Loureiro), e vários carmelitas. Pe. Pedro de Sousa Tenório, vigário de Itamaracá, terminou enforcado e esquartejado no dia 10 de julho.[17]Por sua vez, Padre Miguelinho foi executado a tiros de arcabuzes na Bahia em 12 de julho seguinte. Condenado também à pena capital, o Pe. Antônio Pereira de Albuquerque, que se tornara membro do governo provisório da Paraíba, subiu ao patíbulo em 6 de setembro,[18]no Campo do Erário de Recife. Igual que no caso do Pe. Pedro Tenório, vilipendiaram-lhe o cadáver, decepando dele as mãos e a cabeça, enviadas respectivamente para a Vila do Pilar e cidade da Paraíba (atual João Pessoa) para serem expostas em público. O tronco, arrastado pela cauda de um cavalo, chegou até a igreja do Santíssimo Sacramento, aonde recebeu sepultura.[19]

Dois sacerdotes se suicidaram: o primeiro deles, Pe. Antônio José Cavalcanti Lins, enforcou-se na prisão das Cinco Pontas e o segundo, Padre João Ribeiro, no dia 21 de maio, ante o avanço dos realistas, optou por matar-se de modo análogo. Ele cumpriu este gesto na capela do Engenho Paulista, distante três léguas do Recife. As tropas do governo chegaram três dias mais tarde, desenterraram e esquartejaram o corpo, enviando as mãos para Goiana e a cabeça para o Recife. Depois de um desfile macabro pelas ruas da capital da capitania, ao som de gritos insultuosos, o crânio foi exposto na Praça do Comércio, para ser visto pelo povo.[20]

A militância revolucionária do clero induziria o vice-almirante Rodrigo José Ferreira Lobo a expedir uma carta a Dom João VI a fim de aconselhá-lo a não permitir que o novo bispo sagrado para assumir a sé de Olinda, Dom Frei Antônio de São José Bastos (1767-1819), que afinal, por razões outras, não tomou posse, deixasse o Rio de Janeiro. “Senhor”, instava ele, “devo dizer à Vossa Real Majestade que não devia mandar para esta capital o Bispo que está nesta Corte, pois tem aqui grande partido, e contra Vossa Majestade”.[21]

A admoestação não foi ouvida, o mesmo acontecendo em relação ao protesto de José Albano Fragoso (1768-1843), nomeado Juiz das Diligências por decreto de 21 de abril de 1817, em vista da obtenção de todas as circunstâncias relativas à sublevação acontecida. Fragoso argumentava, num documento datado de 19 de julho daquele ano, ser contraditório condenar à morte o Padre Miguelinho, secretário da revolução, mas não a primeira dignidade eclesiástica da diocese – aludia a Dom Azeredo Coutinho (transferido para Portugal em 1802) – que, sendo membro de “empestada seita [maçônica]”, segundo ele, “esquecendo-se da supremacia do seu magistério” agira como instigador, fazendo “vacilar a crença do povo pernambucano”.[22]

De qualquer modo, o governo se acautelou deixando fechado até 1822 o seminário de Olinda, que teve suas portas cerradas em 20 de maio de 1817, dia em que as tropas realistas entraram vitoriosas no Recife. Também baixou um edito através do qual os religiosos foram obrigados a permanecerem dentro das paredes de seus respectivos conventos. Em seguida, no ano de 1818, por ocasião da aclamação de Dom João VI como novo soberano, um decreto baixado no dia 6 de fevereiro ordenou o encerramento da devassa, além do perdão aos que ainda se achassem encarcerados, excetuando-se os líderes da rebelião. Entretanto, os presos que se encontravam sob processo na Bahia não foram beneficiados e somente em 1821 se viram livres. Entre eles estavam frei João da Conceição Loureiro, Frei Caneca, Pe. Francisco Muniz Tavares e outros ainda. Contemporaneamente, tendo constatado que dos 317 réus da revolução de 1817 levados a julgamento, 62 eram acusados de serem membros da maçonaria, por meio do alvará de 30 de março de 1818, o rei proibiu as sociedades secretas.[23]

Tais medidas foram insuficientes, como anotou a inglesa Maria Graham (1785-1842) naquele mesmo ano: “Se a firmeza de comportamento de Luiz do Rego falhou em manter a capitania em obediência, será inútil a outros governadores tentá-lo”.[24]De fato, a Confederação do Equador, que eclodiu em 1824, já nos tempos do Brasil independente, confirmaria que a exaltação politica local sobrevivera.


DILERMANDO RAMOS VIEIRA

  1. SEBASTIANO PAGANO, O Conde dos Arcos e a revolução de 1817, Companhia Editora Nacional, São Paulo 1938, p. 13.
  2. MARIVALDE CALVET FAGUNDES, Subsídios para a história da literatura maçônica brasileira (século XIX), Editora da Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul 1989, p. 39.
  3. ARCI TENÓRIO D’ALBUQUERQUE, A maçonaria e as revoluções pernambucanas, Gráfica Editora Aurora, Rio de Janeiro 1970, p. 63.
  4. NELSON WERNECK SODRÉ, História da imprensa no Brasil, 4ª ed., MAUD Editora Ltda, Rio de Janeiro 1999, p. 15.
  5. FRANCISCO MUNIZ TAVARES, História da Revolução de Pernambuco em 1817, Imprensa Industrial, Recife 1917,p. LXXIX.
  6. JÔNATHAS SERRANO – MARCÍLIO LACERDA, Um vulto de 1817, Livraria J. Leite, Rio de Janeiro SD, p. 528.
  7. ADRIANA LOPES – CARLOS GUILHERME MOTA, História do Brasil: uma interpretação, Editora SENAC, São Paulo 2008, p. 325.
  8. NELSON WERNECK SODRÉ, História da imprensa no Brasil, p. 16.
  9. FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN, História geral do Brasil, Edições Melhoramentos, São Paulo 1956, p. 162.
  10. FRANCISCO MUNIZ TAVARES, História da Revolução de Pernambuco em 1817, p. CVI.
  11. JÔNATHAS SERRANO – MARCÍLIO LACERDA, Um vulto de 1817, p. 538.
  12. NELSON WERNECK SODRÉ, História da imprensa no Brasil, p. 15.
  13. FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN, História geral do Brasil, Edições Melhoramentos, São Paulo 1956, p. 163.
  14. FRANCISCO MUNIZ TAVARES, História da Revolução de Pernambuco em 1817, p. CXXV, CXXXVII.
  15. JOAQUIM DIAS MARTINS, Os mártires pernambucanos vítimas da liberdade nas duas revoluções em 1710 e 1817, Tipografia de F. C. de Lemos e Silva, Pernambuco 1853, p. 14, 577.
  16. ALCILEIDE CABRAL DO NASCIMENTO, A sorte dos enjeitados, Annablume Editora, São Paulo 2008, p. 177.
  17. JOAQUIM DIAS MARTINS, Os mártires pernambucanos vítimas da liberdade nas duas revoluções em 1710 e 1817, p. 580-581.
  18. DENIS ANTÔNIO DE MENDONÇA BOANERGES, O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822, Editora Universitária UFPE, Recife 2006, p. 163.
  19. JOAQUIM DIAS MARTINS, Os mártires pernambucanos vítimas da liberdade nas duas revoluções em 1710 e 1817, p. 7-9.
  20. LOUIS-FRANÇOIS DE TOLLENARE, Notas dominicais, Governo do Estado do Pernambuco – Secretaria de Educação e Cultura, Recife 1978, p.176, 198, 203; VIRIATO CORRÊA, História da liberdade no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1974, p. 95, 100 – 101, 104.
  21. BN – Seção de manuscritos, Ofício de Rodrigo José Ferreira Lobo dirigido a SM em que acusa ao governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, de não ter providenciado para evitar a revolução, e roga que seja impedida a volta do Bispo de Olinda àquela capital (27-5-1817), n.º I – 31, 33, 4.
  22. ARCI TENÓRIO D’ALBUQUERQUE, A maçonaria e as revoluções pernambucanas, p. 162-163.
  23. Coleção das Leis do Brasil, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro 1889, p. 15, 26-28.
  24. JOSÉ CASTELLANI – WILLIAM DE ALMEIDA CARVALHO, História do Grande Oriente do Brasil, Madras Editora, São Paulo 2009, p. 66.