SETE POVOS DAS MISSÕES

De Dicionário de História Cultural de la Iglesía en América Latina
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Conjunto de reduções fundadas pelos padres jesuitas espanhois num território de 500.000 Km2, que hoje integra o estado brasileiro do Rio Grande do Sul, os Sete Povos da Missões faziam parte da Província Jesuítica do Paraguai ou “Paracuária”, cujos limites ultrapassavam aqueles da atual república paraguaia.

Instituida em 1604, seu primeiro provincial foi Pe. Diego de Torres Bollo (1551-1638),[1]e, na parte brasileira, a redução mais antiga foi São Nicolau, fundada em 1626, à qual seguiu São Miguel Arcanjo, iniciada em 1632 (e que se tornaria a missão principal); São Francisco de Borja (1682), São Luís Gonzaga (1688), São Lourenço Mártir (1697), São João Batista (1697) e Santo Ângelo Custódio (1707).[2]Na segunda metade do século XVIII ali trabalhavam dezessete religiosos (nove espanhóis, seis alemães, um húngaro e um italiano),[3]quando o complesso missionário do sul do Brasil entrou em crise a causa do Tratado de Madrid firmado em 1750. Isto porque, segundo o artigo 16 do referido documento, a Espanha aceitou de ceder tal região aos portugueses, deles recebendo em troca a Colônia de Sacramento, fundada em 1680, num território que hoje pertence ao Uruguai.[4]

Para viabilizar a decisão tomada, acertou-se também que os cerca de 30.000 indígenas “reduzidos” se retirariam com os padres para a margem ocidental do rio Uruguai no prazo de um ano, deixando em mãos dos portugueses todos os seus pertences, recebendo cada povo 4.000 pesos como compensação. Isto posto, as duas Coroas solicitaram ao Pe. Francisco Retz (1673-1750), então Geral dos jesuítas, que ordenasse aos missionários da região a disporem seus neófitos a emigrarem. Pe. Retz – este foi um dos seus últimos atos de governo – acatou o pedido e ordenou ao provincial do “Paraguai” de participar-lhes sigilosamente a ordem. O provincial o fez sem demora, mas os religiosos, sem lhe oporem, fizeram-no ver a impossibilidade de transferir tantas pessoas, entre as quais numerosos velhos e crianças, para regiões distantes e ermas, sem falar que o caráter desconfiado dos índios ou a sua inconstância os predispunha à resistência, ou ao risco de um retorno à selva. O governo português não aceitou tais ponderações e o Marquês de Pombal (1699-1782) pediu que fosse indicado para tanto algum padre que nunca houvesse pertencido àquelas missões. Nomeou-se então o Pe. José Isidro de Barreda (1687-1763), vice-provincial do Peru, que por estar doente foi substituído pelo Pe. Bernardo Neydorffert. Seu comissário, Pe. José Cardiel (1704-1782) reuniu os curas das sete reduções, estranhando “o zelo indiscreto” de alguns deles na obstinação à necessidade do cumprimento das ordens recebidas e pediu-lhes de observá-las. Os curas se submeteram por obediência, e conseguiram mover os índios com a força da palavra. O superior das missões, o alemão Pe. Matias Strobel organizou o trabalho de reconhecimento de novos lugares e de cada redução saiu uma partida para analisar o terreno existente ao sul do Ibicui, designado para os novos assentamentos. A iniciativa não foi frutuosa e, com realismo, Pe. Strobel escreveu ao comissário para lhe informar que nem em cinco anos seria possível fazer a mudança, advertindo oportunamente que a trasladação dos índios não se faria sem um milagre, considerando a indisposição que havia visto nas missões.[5]

Como o caso agora envolvia diretamente domínios espanhóis, o novo Padre Geral dos jesuítas, Pe. Ignácio Visconti (1682-1755), para eliminar suspeitas em Fernando VI (1713-1759) da Espanha, havia aceitado que ele nomeasse um padre da Companhia de sua preferência para atuar com plenos poderes na região. O escolhido fora Pe. Luís Lopez Altamirano, que chegou a Buenos Aires aos 20 de fevereiro de 1752, junto com a comissão demarcadora, liderada por Gaspar de Munive León Garabito Tello y Espinosa, Marquês de Valdelirios (1711-1793). Pe. Altamirano havia recebido do Geral autorização para evacuar as missões e entregá-las aos portugueses, ao passo que os demais recém-chegados, em união com o comissário lusitano, Gomes Freire de Andrada (1685-1763), ficaram encarregados de traçar sobre o terreno as novas fronteiras meridionais e de proceder, pela força se necessário, às operações previstas.

Os jesuítas da região pediram três anos para levarem a cabo a transferência, mas Valdelirios respondeu secamente que “não lhes daria três meses”. Vista a intransigência do Marquês, Pe Altamirano dirigiu-se pessoalmente aos Sete Povos, insistindo junto aos guaranis para que cumprissem a disposição, ao mesmo tempo em que advertia seus irmãos de ordem a deixarem as missões com os catecúmenos porque a palavra dos superiores não permitia dúvidas. Três reduções – São Borja, São Luís Gonzaga e São Lourenço – aceitaram, mas as demais não. A maioria dos nativos julgava intolerável a ideia de abandonar às pressas a terra onde sempre habitaram e todos seus pertences, justamente para entregá-los aos portugueses, os piores inimigos que tinham. Pe. Altamirano foi acusado de ser um português disfarçado e teve de fugir.

Nesse ínterim, a linha divisória começou a ser traçada a partir de Castilho Grande, onde os comissários plantaram o primeiro marco. Dali continuaram pelo divisor de águas da Lagoa Mirim e as dos rios Santa Lúcia e Negro, passando entre as nascentes deste rio e as do Jaguarão. Isto feito, prosseguiram até a foz do Ibicuí e depois pelo rio Uruguai, até atingirem a foz do Pepiriguaçu. A demarcação continuou até 27 de fevereiro de 1753, quando um grupo de engenheiros e soldados luso-espanhóis chegou à região de Santa Tecla (nas proximidades da atual Bagé, RS), pertencente à missão de São Miguel, onde foi barrado pelos indígenas, liderados por Sepé Tiaraju e Miguel Taimacay.[6]

Depois deste episódio terminaram-se as negociações, e, apesar de que os padres tenham pedido clemência para os nativos, Valdelírios ordenou ao governador de Buenos Aires, José de Andonaegui (1685-1761), de cumprir o recurso extremo autorizado pelo rei, e expulsá-los pelas armas. Assim, menos de dois meses mais tarde, no dia 15 de julho, os altos comissários reunidos na Ilha de Martin García, resolveram declarar guerra às missões, se dentro de um mês não fosse dado início à mudança dos povos. Foi o estopim da Guerra Guaranítica.[7]

O resto do ano se passou em preparativos para um conflito que se deflagraria em duas campanhas. A primeira, conduzida por José de Andonaegui, partiu contra os insurretos aos 2 de maio de 1754. Após enfrentar longas caminhadas e um inverno rigoroso, regressou a Buenos Aires no ano seguinte, sem nada conseguir. Sem desistir do seu projeto, portugueses e espanhóis organizaram uma segunda expedição em 1756, composta por 1.700 homens das tropas espanholas, que por disposição de Andonaegui, ficaram sob o comando do governador de Montevidéu, Dom José Joaquim de Viana (1718-1773); e 1.200 luso-brasileiros, sob a liderança de Gomes Freire de Andrada e do coronel dos dragões do Rio Grande do Sul, Tomás Luís Osório. Em Sarandi, no dia 16 de janeiro, os dois exércitos se encontraram, partindo dali para a região disputada.

Alguns jesuítas, entre os quais o Pe. Lourenço Balda, espanhol, vigário de São Miguel, preferiram permanecer junto dos seus catecúmenos, num gesto extremo que não mudaria o curso de uma luta previamente perdida. Os índios não subestimavam o poder do exército inimigo, cuja grandeza lhes fora revelada pelos seus espiões; mas, como haviam sinceramente aderido à nova fé recebida, esperavam que suas orações e ladainhas, mais as imagens de santos que carregavam processionalmente até nas batalhas, os protegessem, concedendo-lhes a vitória. José Tiaraju, o capitão Sepé, mais astuto, insistiu para que antes se organizassem guerrilhas, até que as tropas indígenas fossem devidamente aparelhadas, mas sua proposta não prevaleceu.[8]

E a luta teve início. Heróicos, mas empunhando armas rudimentares contra artilharia pesada, os nativos indígenas nada podiam contra as forças luso-espanholas. As baixas aliadas foram insignificantes, enquanto os guaranis morriam aos milhares. Aos 7 de fevereiro de 1756, junto ao rio Bacacay (ou Vacacaí, como se diz em português), tombou José Tiaraju, transformado depois em “São Sepé” pela tradição popular local; e no dia 10 do mesmo mês, no serro de Caaibaté, nas nascentes do rio Cacequi (lugar denominado depois de “Campo da Cruz”) 1.200 guaranis foram massacrados, tombando também Nicolau Ñenguiru, o cacique principal. Os índios ainda combateram em Boca do Monte (22 de março), no caminho que conduzia à missão de São Miguel (3 de maio), e também junto ao arroio Churiebi (atual Chuni); mas, não passaram de tentativas desesperadas, incapazes de impedir a avançada das tropas inimigas.

Aos 16 de maio de 1756, Gomes Freire de Andrada penetrou em São Miguel, e a partir daí cessou a resistência organizada, pois os guaranis, ou se deixavam guiar pelos padres e transpunham com eles o rio Uruguai, ou se embrenharam nas matas. Gomes Freire continuou tranqüilamente sua marcha até Santo Ângelo, onde acampou. Embora não existissem jazidas de minerais e pedras preciosas na região, ele permaneceu ali vários meses, escavando e fazendo pesquisas, na patética busca do fabuloso tesouro dos jesuítas. Nada encontrando, como já haviam feito os demais comissários, teve de retirar-se, indo para Rio Pardo, pois era a hora de aplicar na prática o Tratado de Madrid.[9]

Pedro Antônio de Ceballos (1715-1778) nesse meio tempo substituiu o velho Andonaegui em Buenos Aires, e chegou às missões aos 2 de abril de 1757. Não obstante o saldo atroz de milhares de vítimas, Gomes Freire não queria nem assumir os Sete Povos, nem abrir mão da Colônia de Sacramento, provavelmente pela desconfiança que sentia relação a Pedro de Ceballos. Vale dizer: o representante português suspeitava que o governador espanhol não só era maleável para com os jesuítas, como também estaria disposto a repovoar as missões arrasadas ou mesmo, de fazer a guerra contra os portugueses na primeira ocasião. Seria este, portanto, o motivo pelo qual ele discretamente regressou ao Rio de Janeiro, reassumindo sua sede aos 20 de abril de 1759. Coincidência ou não, naquele mesmo ano Fernando VI morreu sem deixar sucessor direto, e a coroa espanhola passou para o seu irmão, o “ilustrado” Carlos III (1716-1788), Rei de Nápoles e Sicília. Como recorda Pedro Calmon, Ceballos, que nunca simpatizara com os portugueses, pode conceber um grandioso projeto que daria os espanhóis não só o Rio Grande do Sul, mas também Santa Catarina.[10]

A esta altura, tanto em Madrid quanto em Lisboa, ninguém se iludia a respeito da pseudo-solução de 1750, e por isso, o tratado de El Pardo firmado aos 13 de fevereiro de 1761 declarou nulas as decisões precedentes, e restabeleceu as antigas fronteiras. A situação de modo nenhum estava resolvida, pois as querelas européias reacenderiam a luta. A causa imediata foi a formação do “pacto de família” pelos Bourbons de França, Espanha e Nápoles no dia 15 de agosto daquele mesmo ano, com o objetivo de conter o poder marítimo e a expansão colonial da Inglaterra. Portugal, velho aliado dos ingleses não aderiu, e foi invadido por espanhóis e franceses no ano seguinte. Cebalhos aproveitou do ensejo, e no dia 5 de outubro de 1762 sitiou Sacramento. O governador local, Vicente da Silva da Fonseca, resistiu como pode, mas teve de capitular no dia 29 do mesmo mês. No dia dois de novembro, o vencedor penetrou triunfante no perímetro urbano, causando tão forte desgosto a Bobadela que apressou a sua morte, ocorrida em 1º de janeiro de 1763.[11]

Sucessivamente, no dia 1º de outubro de 1777, seria assinado um terceiro tratado –Santo Ildefonso– que redesenhou outra vez o mapa da América meridional. Os portugueses resultaram os grandes perdedores, pois cederam à Espanha tanto a colônia de Sacramento quanto a região dos Sete Povos. Este tratado jamais foi aceito pelos brasileiros do Rio Grande do Sul, e em 1801, quando Espanha e França entraram de novo em disputa com Portugal, os “gaúchos” partiram para a reconquista, retomando a força toda a antiga região dos Sete Povos, mas não Sacramento.[12]Enfim, o “Tratado de paz e amizade” celebrado em Badajoz no dia 6 de junho daquele ano, pôs fim ao litígio, tornando a área dos Sete Povos definitivamente brasileira.[13] A situação dos índios já se tornara então secundária entre os contendedores, até porque, em 1768, também as reduções da América hispânica haviam sido abolidas. Isso induziria René de Chateaubriand (1768 – 1848) a fazer depois uma amarga denúncia: “Sempre que se pinta o quadro da felicidade dum povo, é forçoso rematar na catástrofe: no mais rico das pinturas, o coração do escritor contrai-se a esta reflexão que incessantemente o inquieta: Tudo isto acabou (o grifo é do autor). As missões do Paraguai estão extintas; os selvagens reunidos com tantas canseiras erram de novo nos sertões, ou abafam vivos nas entranhas da terra. Aplaudiram aí a aniquilação duma das melhores obras da mão do homem. Era uma criação do Cristianismo, uma seara adubada com sangue dos apóstolos: ódio e desprezo foram a sua recompensa! Todavia, no momento em que triunfávamos, vendo os índios recaírem no Novo Mundo na escravidão, a Europa proclamava a nossa filantropia e amor da liberdade. Essas vergonhosas alternativas do coração humano, consoante as contrárias paixões que o assoberbam, esterilizam a alma, e perverteriam quem se detivesse longo tempo a meditá-las. Confessemos antes que somos fracos, e profundos os desígnios de Deus, a quem apraz experimentar os que o servem. Ao passo que nós aqui gememos, os inocentes cristãos do Paraguai, enterrados nas minas de Potosi, decerto acatam a mão que os feriu; e, com sofrimentos resignadamente suportados, adquirem um lugar daquela república dos santos, que está abrigada da perseguição dos homens”.[14]

Notas

  1. TEÓFANES EGIDO (COORD), Los Jesuítas en España y en el mundo hispánico, vol. 1, Marcial Pons Historia, Madrid 2004,, p. 209.
  2. GIANPAOLO ROMANATO, Gesuiti, guaranì ed emigrati nelle Riduzioni del Paraguay, Longo Editore, Ravenna, 2008, p. 36-37.
  3. SÍLVIO PALACIOS E ENA ZOFFOLI, Gloria y tragedia de las misiones guaranies, Ediciones Mensajero, Bilbao 1991, p. 377.
  4. Tratado de Limites das Conquistas entre os muito Altos e Poderosos Senhores Dom João V Rei de Portugal e Dom Fernando VI de Espanha, Oficina de José da Costa Coimbra, Lisboa 1750, p. 29 – 30.
  5. AURÉLIO PORTO, História das missões orientais do Uruguai, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro 1943, p. 424.
  6. ARTHUR FERREIRA FILHO, História Geral do Rio Grande do Sul, Editora Globo, Rio de Janeiro 1958, p. 37.
  7. AURÉLIO PORTO, História das missões orientais do Uruguai, p. 428 – 429.
  8. AURÉLIO PORTO, História das missões orientais do Uruguai, p. 427 – 428, 441.
  9. ARTHUR FERREIRA FILHO, História geral do Rio Grande do Sul, p. 38 – 39.
  10. PEDRO CALMON, História do Brasil, vol. III, Companhia Editora Nacional, São Paulo 1943, p. 215- 216.
  11. JOSÉ FELICIANO FERNANDES PINHEIRO, Anais da Província de São Pedro, 4ª ed., Vozes, Petrópolis 1978, p. 88 – 90.
  12. O chefe mais conhecido dessa proeza foi José Borges do Canto, um aventureiro desertor, que se redimiu, levando a cabo a aventurosa empresa. Os gaúchos, logo trataram de povoar a região, e por isso chamaram açorianos para ocuparem o local, assegurando a posse (CARLOS ALBINO ZAGONEL, Igreja e imigração italiana, Tipografia e Editora La Salle, Porto Alegre 1975, p. 21).
  13. SÍLVIO PALÁCIOS E ENA ZOFFOLI, Gloria y tragedia de las misiones guaranies, p. 378.
  14. FRANÇOIS RENÉ DE CHATEAUBRIAND, O gênio do Cristianismo, W. M. Jackson Inc., Rio de Janeiro 1948, vol. II, p. 226 – 227.


DILERMANDO RAMOS VIEIRA